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PÃE NA PANDEMIA

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“Sou pai e mãe do meu filho!”. Batia no peito e orgulhava-se disto. Alguns colegas da pelada no fim de semana o zoavam por ele fazer o que era da mãe. Ficava fulo! Afinal, era seu filho e ele teria de tomar conta do Dudu para “ajudar” a esposa.

“Saco”, bradava. Os parças nem se tocavam do seu esforço, todos os sábados, para levar Dudu na casa da vovó antes de ir jogar bola no Aterro, como era de costume, “de lei”!

Martha cansou de reclamar, mas o futebol era “sua cachaça” com os parças. Afora o futebol havia os chopes de sexta na confraternização com a galera do escritório.

Trabalhavam estressantes 8 horas por dia. Dudu estava sempre quase dormindo, quando ele saía e chegava a casa. Via mais o menino aos fins de semana, antes e depois da pelada, quando também aproveitava e visitava a mamãe, com quem deixava o filho. Reservava o domingo para passar totalmente com Martha e Dudu, como bom “chefe de família”.

Mas veio a pandemia.

Home-office, quadras de futebol fechadas, e a vida em casa, em casa, em casa, em casa, em casa….Dudu passou a vê-lo mais. E ele a Dudu. Dudu o queria pra jogar no PlayStation. Mas ele achava um saco. Os desenhos eram infantis demais para ele, um tédio dividir o sofá com Dudu.

Disfarçava, mas ele, o pãe, era muito ruim em encobrir sua impaciência com aquele novo mundo trazido pela pandemia. O pãe começou a repensar sua masculinidade, quando Martha pedia para ele limpar a casa, catar o feijão Orgânico, fazer o lanche de Dudu. Trocar roupa de cama? Respondia estes afazeres sempre com - “estou com um cliente numa reunião por meet.” Respondia estar cansado quando Martha pedia para fazer o dever de casa com Dudu.

O pãe aos poucos tornou-se um hóspede cada vez mais abusado naquela casa. Afinal, “ele trabalhava muito, e ganhava mais que Martha”, a parceira que, ao perder o emprego, “empreendia” em doces e salgados.

 

Passou a dar uns cascudos em Dudu, e exigia mais da Martha, como sexo animal e provas de amor, mesmo ela tendo trabalhado como “uma condenada” , e com um pãe-hóspede passando seus dias num escritório virtual, em casa.

Masturbava-se desesperadamente para aliviar as emoções da “prisão”. “Homem não é para ficar em casa”, resmungava.

Um dia pegou a moto e foi atrás do seu mito. Abraçou amigos da equipe de Harley Davidson, “The Warriors”.

Três dias depois tossiu muito. Martha e Dudu isolaram-se no quarto e passaram a usar máscaras. No quinto dia, o pãe foi intubado. No oitavo morreu..

Martha e Dudu viveram felizes para sempre.

Álvaro Pereira do Nascimento

Historiador e pesquisador 

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Rio de Janeiro

 

arte Printerest

maio 2021