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DAMIÃO EXPERIENÇA O OUTRO LADO

DO PLANETA LAMMA

 

 

 

Hoje, em tempos de quarentena, é inevitável pensarmos em situações análogas em que, por determinadas posturas desafiadoras e insubmissas, ou por um modo de vida provocativo, alguns indivíduos estão há muito tempo submetidos a um permanente confinamento. Artistas como Van Gogh, Artaud, Lima Barreto, Bispo do Rosário foram mais que confinados, primeiro prisioneiros da indiferença, do estranhamento, do escárnio e mais tarde trancafiados em masmorras por não terem masmorras dentro de si. Aqui no Rio de Janeiro, viveu um desses artista inclassificáveis mas que tantas vezes era rotulado como louco e confundido com um mendigo: Damião Experiença, morto no ano de 2017.

 

Damminhão Experiença, como ele também assina, compôs, escreveu, tocou, regeu, gravou, criou as capas e comercializou sozinho todos os seus discos. Todas as suas obras eram, sem exceção, peças dissonantes, aberrantes, intoleráveis para muitos. Essa foi a sua loucura. Ele foi um louco? Talvez no sentido visionário consagrado pelo poeta e dramaturgo francês Antonin Artaud, para quem o louco “é o homem que a sociedade não quer ouvir, e que é impedido de enunciar certas verdades insuportáveis”. A sociedade, nesse caso encarnada pela indústria cultural e pelo “bom gosto musical” se, felizmente, não o confinou num manicômio, isolou sua criação e portanto a sua existência. Foi o que bastou pra destruir e paradoxalmente catapultar a criação.

 

Nascido Damião Ferreira da Cruz, na pequena cidade de Portão no sertão da Bahia, há 79 anos, veio para o Rio de Janeiro ainda criança, escondido num porão de navio. Trabalhou na marinha até ser aposentado por causa de um acidente. No Rio ele se recriou com o nome de Damião Experiença, um ser musical vindo de um planeta inventado por ele, o Planeta Lamma. Como Damião Experiença gravou, num período de 20 anos começando na década de 70 e indo até início da década de 90, um número impreciso de discos. Em cada disco há uma revelação de peculiariedades deliciosas. A começar pelas capas. Apenas nos seus dois primeiros vinis elas são identificadas com o nome do disco e títulos das canções. Para todo o restante da sua discografia, qualquer capa serve para qualquer disco, desse modo várias combinações são possíveis. São capas sempre com fotos dele, muitas delas coloridas e com colagens em cima de fotos do próprio Damião vestido de guerrilheiro.

 

Os discos têm títulos quase indecifráveis como “Adeusadolfhitler1945fim”, e nomes para os lados do disco. Nada de lado “A” ou “B”, os lados são conhecidos como, por exemplo, lado “Queijo” e lado “Manteiga”. No rótulo do vinil há anotações de onde se pode encontrar o disco: invariavelmente é o endereço da loja carioca Modern Sound, fechada há dez anos. Os títulos das músicas tanto podem ser muito simples como “Água” “Luz” e “Bar”, como verdadeiros discursos como esse: “As pessoas que casam, são doentes mentais, teem um diagnóstico por nome personalidade psicopata, quer dizer: grandeza. Eles se sentem super homem, teem a coragem de sustentar um troço chamado mulher. Não sabem que elas são iguais a eles, e podem trabalhar para sustentá-los...” Damião vivia repetindo, nas músicas e na rua, que gosta de apanhar de mulher. Mas tanto ele declarava seu amor por virgens, como confessava gostar de mulher vadia, mulher lésbica, mulher bandida...

 

Sustentar e ser sustentado por mulher, apanhar de mulher, mas não bater, histórias de amor e de abandono estão misturadas a uma poesia de temática social. Damião declama sofrido: “o povo está comendo jegue” ou se queixa constantemente dos “bicho da cara preta”, policiais que maltratam o povo dos morros e da periferia, em sua grande maioria negros como ele. Nesses momentos é capaz de produzir uma poesia direta, sincera e muito bonita. “O germe da luta ali agora brotou/ A matraca metralhar que há pouco chegou/ A cuíca gemeu quando o sangue jorrou/ Nos trilhos do morro a alma do povo”. Afirmava ter vindo do Planeta Lamma, entidade astrônomica de um universo próprio, com um língua própria, embora Damião, curiosamente, declarasse não dominar tal idioma, mas sim um dialeto do Planeta. Vários versos, de muitos estilos literários, foram escritos e depois musicados nesse dialeto.

 

Sua música é formada por um caldo cósmico de influências e de referências ora compactadas, ora estendidas em improvisações e repetições. Como o grande Chico Science em sua cabeça havia uma parabólica pra captar os sinais de todos os cantos e espaços do mundo, e transformá-los em música: free jazz, rock guerrilheiro, blues rasgado, reagge malemolente, música atonal, voz que não acerta o tempo da música, mas acaba encontrando a melodia em outro tempo e numa lógica própria, essa é a música de Damião. Sua arte passou por várias fases evolutivas. A primeira, acústica, em que Damião, no primeiro disco, toca violão só com uma corda, aumentando o número de cordas até o seu sexto disco quando o violão já tem seis cordas. Nessa fase ele canta só em um dialeto Lamma e toca gaita de boca acompanhado de um chocalho amarrado no braço. Na segunda fase, que começa no sexto disco, aposenta o chocalho, coloca bongô e marimba e passa a cantar em dialeto e em português. A terceira fase é a do rock experimental, com toques de jazz, reagge, mpb e até música nordestina. Na quarta fase, Damião ataca de blues, pega as bases dos acústicos, mixa e vai sobrepondo vozes que se somam até cinco. E sua quinta e última fase é composta de base de rock com metais e flautas.

 

Rastafari no visual, com espírito hippie na criação artesanal, punk na rebeldia e na independência, anarquista, as vezes se dizendo direitista, outras comunista, machista e feminista (ele tanto admira mulheres independentes, como diz que mulher não presta), capaz de feroz crítica social e de conformismo religioso, Damião expressa tudo isso ao mesmo tempo com uma contradição apenas aparente. De uma forma muito particular ele sabe que toda a ideologia limita, pode cair num vazio desprovido de humanidade, sem sentido. As idéias para Damião são uma só, o tempo circula junto com elas. O tempo para Damião Experiença é circular não linear. O mundo dá voltas e as idéias podem passar outra vez pelo cérebro do bardo do Planeta Lamma para serem fundidas com outras. Quem disse que o tempo não para?

 

Para Damião Experiença o tempo nunca andou para frente, sempre circulou num mesmo universo, numa amálgama compacta. Ele citava fatos de 30 anos atrás como se tivessem acontecido ontem, falava de mortos como se ainda estivessem vivos e doava seus discos à amigos, com completo desapego e com a sapiência de que o tempo gira e esses discos, assim como tudo em sua vida, vão voltar para ele. Um dia. Pode ser aqui, pode ser no Planeta Lamma.

 

 

Onde fica o Planeta Lamma?

 

A localização exata nunca foi descoberta pelos astrônomos, mas uma definição do seu significado abstrato e quântico pode ser encontrada no livro “Planeta Lamma”, de autoria de Damião, encartado no disco Planeta Galinha, diz: “Porquê Planeta Lamma? Porque todos nós iremos para a lama. Porque depois que nós morrermos, a gente vai para o chão, se a gente é queimado, depois as cinzas, a gente põe no chão e elas viram lama; Então eu digo: Planeta Lamma.”

 

Planeta Lamma não é uma simples maluquice, um delírio qualquer, é uma metáfora para a morte. Onde hoje ele está, de onde nunca saiu.

 

 

 

Gil Rodrigues

Roteirista e Jornalista

 

 

Foto: Capa do disco de  Damião  Experiença

 

 

Rio de Janeiro

maio 2020