território livre  |  desde 2020

 

UM DEUS É LAICO

 Ed 11 Furio foto.jpeg

Desde os primórdios, os homens cultivaram o medo do desconhecido de forma regular. Temiam principalmente fenômenos que não conseguiam entender direito, como relâmpagos, raios, trovões e suas decorrências. Para pior as coisas, tudo vinha de cima, do alto, de onde não era possível precisar com exatidão, mas que os deixavam numa eterna vigília.

 

Tentou-se um pouco de tudo: preces, dança da chuva, sacrifícios de animais e até de crianças. A Humanidade achava que o sangue seria uma espécie de dádiva no intuito de aplacar a ira da natureza.

Daí para a invenção de Deus foi um passo e as religiões se disseminaram pelos quatro cantos do mundo com uma velocidade espantosa. Já não era mais a natureza que atrapalhava o cotidiano com tempestades, inundações, borrascas, incêndios & ciclones ou mesmo as geadas que abortavam a colheita de alimentos. Era algo maior, que residia acima de suas cabeças e que (teoricamente) monitorava as andanças e o objetivo dos homens.

 

O medo deixou de ter uma cara conhecida, dissimulava-se entre as nuvens, no cimo das montanhas, era abstrato, diáfano, volátil, sutil, apenas uma sensação. Podia estar entocado em qualquer lugar. Provavelmente, tinha poder, regulava a entropia do universo, metia-se na vida dos seres humanos sem pedir licença, controlava atos e até pensamentos, ficava de butuca. E exigia retribuição.

 

Como essa entidade foi criada a partir do conhecimento limitado dos homens, passou a ser dotada de todos as características humanas, particularmente de seus defeitos, como a crueldade, por exemplo.

No andar da carruagem, um espertinho resolveu tirar uma casquinha dessa parada e virar o jogo a seu favor: inventou que Deus tinha seus representantes na Terra. Numa tacada só, surgiram o papa e a Monarquia. Como a gênese de ambos era a mesma, uniram-se, demarcando territórios e estabelecendo deveres.

 

O postulado maior foi entronizado com toda pompa: os homens tinham que se resignar a sua condição de submissos perante os desígnios de Deus e, agora, também dos monarcas de plantão, que estabeleceram parâmetros de conduta bem claros. Como nenhum dos dois tinha a menor vocação ao trabalho, alguém tinha de exercer essa demanda. Emitiram aforismos que, com o tempo, se transformaram em dogmas:

 

O trabalho enobrece o homem.

 

Deus ajuda quem cedo madruga.

 

Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás, é digno de entrar no Reino dos Céus.

 

O trabalho espanta três males: o vício, a pobreza e o tédio.

 

Consagre ao Senhor tudo o que você faz, e os seus planos serão bem-sucedidos.

 

 

Caso contrário, seriam punidos. Como evitar essa retaliação? Sendo cordatos, evidentemente, e se submeterem aos mandamentos da Igreja e às leis do Estado. Como recompensa, teriam a eternidade a seu dispor, pois, nesta vida, nem pensar.

Seguiu-se uma série infinita de privações (oficiais ou não): o celibato dos padres, o voto de pobreza, o voto de silêncio das freiras e o ascetismo dos franciscanos, sem contar com as flagelações periódicas de frades em claustros beneditinos que metiam o chicote nas costas e a peregrinação de malucos deserto adentro, onde jejuavam por meses ou anos.

 

Alguns se rebelaram e foram devidamente supliciados. Em surdina, surgiram os ateus, os agnósticos, os céticos, os cínicos, que se escondiam em catacumbas iluminadas por tochas de querosene e ficavam trocando ideias.

 

A Humanidade foi se temperando e se ajustando a essas condições, cada grupo a sua maneira. Nem todos acreditavam num deus onipotente, porém, e foram substituindo as palavras abstratas como alma, fé e aura por outras meio anfíbias, como energia, luz e a própria natureza, que voltava com toda sua força telúrica.

Mas algo me diz que as pessoas andam procurando resolver seus medos de forma inusitada nos tempos estranhos que correm, inclusive os ateus.

 

Quem não tem fé em algo sobrenatural, enfronha-se em almanaques de autoajuda ou refugia-se em obscuros consultórios de terapeutas sacanas onde fingem abrir seus corações e mentes em troca de miseráveis instantes de alívio.

 

Mas conheço gente que arquitetou algo muito mais louco: cultivam uma metodologia que mantém na corda bamba um tipo de abstenção e seu consequente (e hipotético) prêmio. Não são religiosos nem nada, mas rezam por uma carta de princípios cujos objetivos não diferem do de seus ancestrais.

Regulam o cotidiano com base em renúncias, como se uma força superior pudesse avaliar essa boa vontade e lhes garantir uma recompensa.

 

Quanto a isso, o homem moderno não precisa se preocupar: o cardápio de culpas é amplo & variado e atende a todos os públicos.

Sob as mais diversas alegações (algumas fruto de conclusões científicas e outras com base em especulações polêmicas), as renúncias mais recentes listam várias sugestões que afetam a dieta do cidadão comum (inclusive demonizando determinados produtos): carne vermelha, patê de fígado de ganso, arroz beneficiado, farinha branca, glúten, macarrão, açúcar, frituras e pizza com massa grossa.

 

Mas há sutilezas de raciocínio tão sofisticadas que beiram o misticismo.

Por exemplo: alguns privam-se de coisas elementares, como ir à praia num sábado à tarde, por exemplo, alegando que ainda não ganharam o suficiente para resolver o sustento daquela semana.

Se ainda fosse no meio da semana, vá lá, pois ainda é possível batalhar um trampo, uma grana, um bico, mas no sábado, dia que normalmente se descansa? Desde que a pessoa acreditasse no além e suas entidades celestiais, o método até que faria sentido, pois a fé cega resolve os problemas mais cabeludos. Sem ter uma crença religiosa, imolar prazeres em troca de uma graça é como acreditar que as esferas do cosmo possam trabalhar a nosso favor desde que demonstremos um tipo peculiar de abnegação.

Percebo claramente o tamanho do sacrifício: elas abrem mão de se refestelarem preguiçosamente na areia, sentindo os raios cálidos do sol queimando a pele, ouvir as ondas do mar batendo nas pedras e vislumbrar a linha do horizonte, o que é universalmente considerado um lazer.

 

O que não consigo entender é por que, através de quais mecanismos e em que medida a Providência possa reverter o traçado original do destino, se é que realmente ela tem essa incumbência ou poder. Se as pessoas recebem ou não essa gratificação, nunca soube, mas o fato é que isso (de uma maneira ou outra) começou a fazer parte da mitologia da vida.

 

Por mais louca que seja essa argumentação, ela tem seu mérito e não passa muito longe das crenças de uma fé religiosa. O que mais me preocupa é o seguinte: como se dá isso na prática? Haverá uma captação estratosférica das vibrações dos indivíduos, devidamente canalizadas para uma redoma universal que cruza as informações e age de acordo com determinados postulados e regras? Privações estariam sendo catalogadas num virtual micro totêmico e holístico e graduadas para verificação de possíveis recompensas de acordo com a intensidade? Haverá nesse laboratório estelar campânulas e pipetas que pingam hóstias metafóricas que são distribuídas às almas desconsoladas deste imenso vale de lágrimas?

 

Por outro lado – e não deixa de ser um pensamento válido, pois a mitologia admite várias interpretações -, ir à praia num sábado à tarde não poderá ser considerado também um ato de comunhão com as forças da natureza, uma espécie de prece? Elas não se ressentirão de nossa ausência na areia? Enquanto estamos em casa, imaginando que trabalham a nosso favor, as esferas cósmicas na verdade nos esperam em outro lugar.

Furio Lonza

Escritor e dramaturgo

facebook

 

Rio de Janeiro

fevereiro 2021