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CHAVE DE LUZ

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Aquela tinha sido a semana que o edifício Liberdade desabou no centro do Rio.

Eu levava um pouco mais de um ano morando no Rio de novo, depois de já ter morado uns dois anos em uma vida passada, e eu e a Pamela ouvimos o estrondo do desabamento porque estávamos indo pra Lapa. Morávamos na Saúde, ela na subida do morro da Conceição e eu na Sacadura Cabral. Nós estávamos perto do Banco Central, e ainda assim ouvimos o estrondo. Pra quem não é do Rio: A distância é de mais ou menos um quilômetro e meio. Eu conferi no Google Maps.

Mas, na verdade, a gente só ia saber mesmo o que tinha acontecido quando a gente chegou na Lapa, e porque alguém na nossa mesa de bar nos disse. Na época ainda não era costume ter internet no celular e ficar sabendo de tudo que tava acontecendo em tempo real - nós dois, pelo menos, não tínhamos internet no celular, já que éramos um gaúcho e uma uruguaia pés-rapades, gentrificando uma parte pobre e casca-grossa do centro do Rio. E por isso nós ficamos super curiosos de saber que merda era aquela que tinha rolado, e a curiosidade foi só aumentando

quando, indo em direção de onde tinha vindo o som do estrondo (E de onde ainda rolavam outros sons sinistrérrimos, provavelmente do prédio pegando fogo ou de outros pedaços dele caindo), começamos a notar a muvuca de ambulâncias e carros de bombeiro que logo se formou na frente. Mas não deu pra saber de nada por fonte primária: A polícia fez um imenso cordão de isolamento em volta, e, como eu disse, foi só na Lapa que alguém nos informou do ocorrido.

Foi mais ou menos uma semana depois que finalmente deu pra ficar cara a cara com os escombros do Liberdade. Eu estava sozinho dessa vez. Nem sei se a prefeitura já tinha conferido se era seguro dos outros prédios à volta não caírem. Mas sabem como é o capitalismo, né: É que nem o Covid agora, os comerciantes da rua com certeza fizeram uma imensa pressão pra liberarem o tráfego de pedestres e, junto com eles, o consumo e os negócios, e foda-se a segurança dos cidadãos. Como aliás foi o mesmo motivo que levou ao desabamento do prédio, antes de mais nada.

Eu tava vindo do meu trabalho em Botafogo tardíssimo da noite. Além disso, aquele dia fui ver um filme no Odéon. Foi só quando resolvi voltar a pé pra casa pela Rio Branco, porque era a hora que já não tem mais metrô e os ônibus demoram um tempão pra passar, é que notei a Treze de Maio liberada para trânsito, sem cones amarelos, sem policial cuidando, e daí não resisti. Fui ver o que tinha sobrado do desabamento.

Os escombros do prédio pareciam um dente todo cariado que acabou caindo, e daí você foi às pressas ao dentista pra tirar o resto do dente e estancar a dor com anestésicos e antibióticos. Todo o sangue, o pus e os gritos esterilizados, mas o tratamento de canal ficou inconcluso, não foi feito nenhum implante. Está ali a lacuna do dente, limpa, sem causar mais nenhuma dor, mas é uma lacuna mesmo assim.

Tentei ficar imaginando o desespero e o pavor das pessoas quando elas se deram conta de que iam morrer soterradas. Quando elas se deram conta de que iam morrer em um lugar que tinham como muito seguro. Sei lá, acho que deve ser bem diferente morrer na rua do que morrer dentro de casa, ou do trabalho. As pessoas se isolam nas suas casas, com muro com cacos de garrafas de vidro, com alarmes, com cachorros bravos, com seguranças. As mais ricas, com quartos de pânico. Elas pegam ônibus, metrô, táxi, andam com seus sprays de pimenta na bolsa. E chegam no trabalho, felizes de não terem sido assaltadas ou atropeladas. E aí, o prédio desaba. Ou o viaduto. Ou o túnel do metrô.

Mas agora elas já se foram, já morreram. Os gritos, e até os ecos dos gritos, já estão longe, na estratosfera. Só tem os pedaços de paredes mais pesados, os pedaços do dente que sobraram nos cantos da gengiva, essas mesmas paredes que provavelmente esmagaram as pessoas. Agora tão inofensivas quanto um revólver em cima da mesa, inerte… sem um ser humano por perto pra puxar o gatilho, ou um ser humano irresponsável e corrupto, para fazer uma obra de reforma sem a aprovação de um engenheiro civil. Apenas matéria. Matéria que parou de cair. Matéria que já não mata mais. Chega a ser até bonito, aquelas ruínas cercadas de arranha-céus, no meio da noite.

Em cima dos escombros eu vi um cachorro vadio, brincando com um objeto não identificado. O cachorro se deu conta de mim mais ou menos ao mesmo tempo em que eu me dei conta dele. Com cachorros normalmente é assim. Ele veio correndo até a minha direção, me dando tempo até pra começar a ficar com medo. Considerei a hipótese do cachorro ser bravo, ou pior ainda, estar com raiva. A doença, não o sentimento. Mas na verdade o cachorro queria só brincar. Era um daqueles típicos vira-latas serelepes. Talvez ele achou que eu tivesse comida junto comigo. De qualquer maneira, ele trouxe o objeto não identificado junto com ele pela boca e me entregou. Era uma chave de luz, daquelas de corredor de prédio, sabe? Daquelas que tem um desenho de uma lâmpada para você diferenciar das chaves de campainha dos apartamentos. Eu congelei de pavor, enquanto o cachorro me olhava esbaforido e abanando o rabo. Acho que eu só teria ficado mais chocado se ele tivesse me trazido uma mão ou uma orelha humana. Só que essas, os bombeiros certamente devem ter feito um bom trabalho em limpar. O meu pavor foi porque aquela chave de luz na minha mão ligou alguma coisa dentro de mim: pela primeira vez até aquele momento, a tragédia das vítimas do prédio se materializou pra mim como algo real. Eu imaginei aquela chave de luz sendo apertada várias vezes pelas pessoas que morreram no desabamento, rotineiramente toda a vez que saíam ou entravam por um corredor do prédio. Algum casal de colegas de trabalho deve ter feito sexo às escondidas, por detrás da porta de incêndio, e no calor da empolgação esbarraram na chave de luz, acidentalmente iluminando todas os lances de escada. Uma coisa tão íntima assim não tinha como passar incólume pela minha sensibilidade e daí, a partir de então, aqueles escombros passaram a ter vida. E eu comecei a enxergar as pessoas no meio deles.

E não só as pessoas. Por pouco eu não enxergava também as impressões digitais das vítimas, gravadas sobre o botão da chave de luz, como se tivessem passado um daqueles pós de pirlimpimpim da perícia civil que deixa as impressões digitais luminescentes sob luz negra, e esse pensamento na minha cabeça levou a outro, ao de que as digitais eram sim, de certa forma, o equivalente a uma orelha ou uma mão decepada por uma viga de concreto, um pedaço de corpo, um resquício de matéria orgânica.

Como quando morre uma pessoa querida da família, e você ainda tem um pote de vidro com um chumaço do cabelo dessa pessoa, sabe? Chumaços de cabelo, dentes de leite, unhas, digitais, gordura sebosa da pele. Uma mensagem póstuma de uma pessoa querida dentro de um pote de vidro boiando. Vestígios náufragos de uma vida, egressos da nave-corpo que já afundou, que já desabou. A saudade e o luto encalhados em uma ilha deserta.

Dei carinho no cachorro, agradeci o presente e segui caminho. Ele voltou para os escombros, talvez para procurar novos presentes para os próximos transeuntes. Talvez ele fosse a morte disfarçada de cachorro. Talvez aquela chave de luz fosse o recibo pelas almas que ele aceitou levar. Como se em troca de escuridão, ele ofertasse justamente… luz.

Já perto da minha casa, eu tirei a chave de novo do bolso, e hesitei em apertar o botão. Tinha medo de profanar as impressões digitais post-mortem. Acabei apertando mesmo assim, e tive a leve impressão de que algumas novas estrelas se acenderam no céu. Gosto de pensar que o número de estrelas foi o mesmo do número de mortos no Liberdade. Mas vocês sabem como são essas chaves de luz de corredor de prédio. A não ser que você fique apertando constantemente, a luz é temporária. Depois de dois minutos, as estrelas no céu se apagaram novamente. Ou foram as almas que chegaram ao paraíso-inferno-purgatório. Joguei a chave fora e entrei pra dentro do meu prédio. Feliz de não ter sido assaltado, de não ter sido atropelado, de não ter sido soterrado. Aliviado e ao mesmo tempo com medo das quatro paredes e um teto à minha volta.




 

Guilherme Bordini

Escritor

 

Porto Alegre

Foto Printerest

maio 2021