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EU POSSO DESTRUIR, SÓ QUE NÃO: 

HETEROFATALISMO NO TAPETE VERMELHO

 

A despeito de ter gostado de Promising Young Woman

ou não, é revelador que este filme esteja arrasando nas

campanhas de premiação, a medida em que I May

Destroy You foi completamente ignorado. É uma declaração

clara sobre que estórias estamos prontos para ouvir

ou continuar ignorando.”

 

Sarah Polley, 3 de Fevereiro, 2021

 

 

 

Ed 13 ilustarção Karen .jpeg

Com esse tuíte, a atriz e diretora canadense Sarah Polley faz coro com o que foi um mar de reações vigorosas a exclusão desta série distribuida pela HBO, escrita, dirigida, produzida e atuada por Micaela Coel, onde um caso de estupro velado entra em foco e se explicita ao longo dos episódios. O longa metragem a qual Sarah Polley se refere, escrito e dirigido por Emerald Fennel, foi descrito por Jeanette Catsoulis do New York Times como um filme que transforma a sociopatia em estilo, e o trauma em piada. A mesma journalista se refere a ele como um filme que se estrutura enquanto estória de vingança, mas que termina sendo menos uma fantasia e mais um conto triste sobre um luto distorcido e fúria lancinante que veio de rebote. Tanto o filme, quanto a série, e as polêmicas em torno de ambos afirmam a pertinencia do conceito recém cunhado de heterofatalismo.

 

Este termo, utilizado primeiro por Indiana Seresine, Universidade de Cambridge, e depois adotado por Sophie Lewis, do Instituto de Pesquisa Social do Brooklyn e pesquisadora da Penn University, implica na maxima: é mais fácil imaginar o fim do heterosexualismo, do que imaginar uma nova utopia de masculinidade cis. Nos cabe refletir sobre como nossa capacidade de imaginar para além do existente ficou comprometida, promovendo um conformismo com o inaceitável. No seu livro Realismo Capitalista, Mark Fisher também menciona essa falência do nosso poder de especulação ao afirmar que é mais facil imaginar o fim da vida, do que o fim do capitalismo. Pondo de lado a atrofia paulatina do nosso imaginário por hora, para primeiro examinar o que Micaela Coel e Emerald Fennel tiveram necessidade de narrativizar, cada uma com suas ênfases particulares, para depois aliarmos um fenomeno ao outro.

 

Contextualmente, estamos apenas saindo de uma era onde se viu homens como Harvey Weinstein e Jerry Epstein, assim como o ex-presidente Trump manterem condutas extremamente abusivas por um longo tempo,e esses crimes vieram a luz graças ao pronunciamento de suas vitimas. Isso a nivel macro. Numa escala muito mais mundana, Seresine teoriza sobre mulheres que consistentemente cospem na propria heterosexualidade, se consideram lésbicas mal resolvidas, fadadas a infelicidade hetero. Na série mencionada, a personagem central Arabella, interpretada por Micaela Coel mesma, chega a dizer a uma amiga: “Eu não sou hetero, apenas gosto de pau.” No seu artigo, Sophie Lewis lista vários livros em torno dessa abnegação perante a própria orientação sexual.

 

“A postura heterofatalista ainda serve como mais um método através do qual mulheres brancas como eu podem projetar para fora nossa propria covardia e machismo—isso quer dizer, nossa propria aversão a vulnerabilidade. Basta ver a popularidade do livro bizarramente entitulado Como Ficar com Homens Quando Você os Detesta (2019).”

 

(The heterofatalist posture is still serving as yet another method by which white women like me can project outward our own cowardice and machismo – that is to say, our own aversion to vulnerability. Witness the popularity of the ghoulish title How to Date Men When You Hate Men (2019).)

 

O enfrentamento da vulnerabilidade, talvez seja justamente a maior diferença entre I May Destroy You e Promising Young Woman. Ao fim e ao cabo temos duas estórias escritas e dirigidas por mulheres, com protagonistas femininas que, de um jeito ou outro, tiveram suas vidas pessoais descarilhadas em função do assédio e violação sexual. Micaela Coel nos dá um quebra cabeça para destrinchar antes que possamos formar opinião moral, e promover qualquer condenação rala. São varias as pistas falsas, e desenganos na narrativa. Um exemplo saliente é a cena pós-menage da personagem coadjuvante, Terry. A cena se passa na manha do dia seguinte, com os dois homens que supostamente apenas se conheceram na noite anterior, conversando no quarto e depois saindo juntos. Ficamos com a imagem de Terry na janela vendo essa convivialidade entre os dois caminhando na mesma direção. Mais na frente, descobrimos ao fim, que não foi ela Terry que seduziu dois estranhos para realizar sua fantasia, mas sim que eles eram amigos que montaram um esquema para realizar o menage. Ou seja, I May Destroy You, quer celebrar a agencia sexual da mulher, mas termina por revelar que a última risada foi dos dois homens.

 

Já Emerald Fennel tem na propria estrutura identificatória do filme uma confirmação da lógica fálica na vingança: tomo aquilo que considero meu por direito. O truque da protagonista é se fingir de bêbada, até que algum homem tire vantagem da situação, a levando para a cama. Lá, ela sai do semblante de bêbada e vai a forra, vingando especulativamente o estupro da melhor amiga.

Esse ciclo é quebrado quando ela conhece um “bom moço” que a redime e a traz de volta para uma normalidade funcional. Só que não, até o bom moço, é opressor por omissão: ou seja, a hetero-masculinidade é fatal, e nesse caso, também letal. Mas vejamos o formato desse filme: uma narrativa convencional em três atos, protagonizada por uma mulher branca, que quando não está no fervor demente de suas execuções, aparece com vestidos florais, em tons pastéis, seu longo cabelo loiro esbanjando nostalgia e uma normatividade branca que a mantém no papel de sujeito frágil a ser resgatada pelo cavalheiro valente. Como diz Carlos Gutierrez, da organização Cinema Tropical, há filmes que falam de assuntos políticos, sem serem propriamente politícos.

 

Contrastadamente, I May Destroy You nos traz uma mulher negra, com dotes literários, que também se considera dona de seus desejos até que se dá conta que isso não é suficiente para a salvaguardar nem de abusos, nem dos seus próprios subterfugios internos para compactuar com a negação deste abuso, tal o nivel de internalização patriarcal. O abusador em questão também é um homem de cor, indiano, quebrando ainda o protótipo do bom selvagem. Nem o bom moço, nem o exótico civilizado se salvam nessas produções. Tampouco se salvam as mulheres, ambas com muitas caracteristicas indesejáveis. No entanto, a protagonista do filme de uma forma caricata, e a da série com camadas de nuance, o que problematiza sua exclusão dos Golden Globes, uma premiação de peso, que acelera carreiras, e dá visibilidade para tantos diretores.

 

Promosing Young Woman tem em sua propria matriz uma conclusividade típica de cinema industrial: a vingança é bem sucedida, o final é inequivoco. Já a série, amarra vários nós que não se preocupa em desfazer, e esse é seu maior mérito: implicar a nós telespectadores para desatá-los, em nossas salas, nossas cabeças, nossa experiência. Arabella é livre pra fazer o que lhe der na telha, e o teto sempre pode desabar sobre a cabeça dela em forma de violação na mão de um homem, seja ele parceiro, amigo, instruído ou marginal. Não se imagina, nessas produções, heteresexualidade viável para os personagens masculinos.

 

Sophie Lewis nos lembra ainda, que “ a razão pela qual compartilhar nossas vidas com os homens é sentida como violencia em camera lenta, não se deve aos homens em si, mas as hieraquias que nos atravessa a todos, e os eleva enquanto nos sufoca.” Ou seja, corremos o seguinte risco: enquanto houver necessidade de assimetria de poder ao longo dos eixos identitários, seguiremos heterofatalistas, afropessimistas e com outras falências do imaginário ainda a serem nomeadas.

 

 

Referências: * Sophie Lewis * Indiana Seresin * Jeanette Catsoulis

Karen Sztajnberg

Filmaker

Knot films

New York

 

arte Printerest

maio 2021