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MAMÃE SABIA DAS COISAS

 

 

Magical Mistery Tour é provavelmente o disco dos Beatles com a produção mais esculhambada de toda a história da banda por um motivo muito simples: sua concepção é equivocada. Com apenas seis músicas compostas diretamente para a trilha sonora de um média metragem homônimo que pretendia ser lisérgico & transgressivo (mas que resultou apenas bobo e gratuito), não se inseria na estrutura normal de um Lp. Acabou sendo, no máximo, uma mal costurada colcha de retalhos, com o aproveitamento de vários singles lançados anteriormente. Os Beatles queriam transcender os parcos limites musicais, para se entranharem no segmento plástico da vanguarda, intenção corroborada mais tarde com o desenho animado Yellow Submarine, este sim com uma produção impecável (mas as músicas são uma merda).

 

Apesar de não possuir a menor consistência como um projeto original, havia na trilha duas músicas arrasadoras: I´m the Walrus (de Lennon) e Blue Jay Way (de Harrison). A primeira, todo mundo conhece; a segunda passou batida até aos fãs mais ardorosos e fiéis. Pois bem: foi minha mãe que me alertou para as composições de Harrison: melodias sofridas, obscuras, inspiradas, autênticos mergulhos no pântano da alma. Preste atenção, ela me dizia, ele é o melhor compositor dos Beatles, o mais sofisticado. Suas músicas falam da solidão de um homem comum e não de um pop star. Ele traz para a juventude uma reflexão para além do show business. Ele fala da vida. É uma coisa mais profunda. Gosto do Lennon, gosto do McCartney, mas ainda são duas crianças; não amadureceram pra valer, continuam deslumbrados com a fama, o poder e a grana. Pode ver: as declarações que eles dão à imprensa são de uma infantilidade abaixo da crítica. O baterista narigudo alegou que gostava muito de Beethoven. Principalmente de suas letras. Muito engraçadinho. O Lennon disse que seu filho Julian fora concebido no banco de trás de um carro, depois de uma longa noite de bebedeira. Com toda certeza, o moleque vai ficar traumatizado pelo resto da vida, amargando anos e anos num divã de analista. É isso que se espera de um ídolo?

 

Uma tese bonita, sem dúvida. Apesar de eu, na época (1967), estar com catorze anos e provavelmente ter menos maturidade que o Ringo, fiquei de butuca. Minha mãe me alertava para o seguinte: a música (e a arte em geral) deve ter uma função comprometida com o ser humano e não apenas com o aspecto sensorial; os artistas são as antenas da raça; por isso, em hipótese alguma, podem ser negligentes ou omissos: devem assumir toda sua abrangência como influenciadores da opinião pública.

Salvo erro de juízo, a isso se chama formação moral. Ou algo parecido. É fácil perceber porque, com o tempo, passei a ser bastante criterioso (e pentelho) em relação a cantores e bandas em geral. Podia até gostar de suas músicas, mas se o cara vacilava e mostrava que era apenas um mercantilista, com o único objetivo de vender discos para comprar mansões em Malibu ou castelos nos arredores de Londres, caía fora. Exigia atitude, exigia postura, exigia coerência. E isso valia pra todo mundo: roqueiros, jazzistas, blueseiros e o pessoal da MPB.

 

Desta forma, aos poucos, acabei construindo uma escala de valores que se alastrou para os outros campos de atividades: a amizade dependia disso; os relacionamentos afetivos; a convivência no trabalho; a intimidade, o trato com parentes, a correspondência nos negócios, a ternura, a troca de amabilidades. Suspeito que há um viés cristão nisso e não me arrependo, pois tenho certeza de que a obrigação de haver uma reciprocidade entre duas pessoas é o prenúncio de um relacionamento fadado ao fracasso. A chave do enigma é fazer o bem simplesmente porque isso tornará o mundo melhor. Exigir algo em troca nos torna comerciantes sem escrúpulos e cria toxinas suficientes para matar um boi. Seja útil, eis o lema que minha mãe apregoava; produza alguma coisa que sirva: de um tijolo a um poema.

 

E seja fiel a essa ideia durante a vida. Um bom exercício seria criar uma campanha com esse lema e começar a divulgá-la na Bolsa de Valores, por exemplo, o maior antro de ociosos que conheço. Sempre que ouço Blue Jay Way, lembro de minha mãe.

Se havia um membro dos Beatles que tinha toda pinta de enveredar pelo misticismo, este era Harrison.

 

Introspectivo, calado, um meditador por excelência. Tudo começava na paciência de aguentar dois egocêntricos como Lennon e McCartney e pressentir, passo a passo, que suas músicas continuariam apenas como penduricalhos dos discos da banda. Mas a coisa mudou a partir do Revolver: emplacou três: um rockão (Taxman, que abria o Lp), sua estreia na música indiana (Love you Too) e uma balada suingada (I Want to Tell you). Não parou por aí: no disco Sgt. Pepper, arrasou em Within you Without you, onde sofisticou a melodia, agregando orquestra, num arranjo espetacular regido por George Martin. Qual a diferença em relação à experiência anterior do Love you Too?

 

Harrison tocou sua cítara como cítara e não como guitarra (criou climas, ponteou). No Álbum Branco, compôs uma das melhores músicas dos Beatles (While my Guitar Gently Weeps), com direito a um solo chorado & pungente de Eric Clapton. No Abbey Road, mais duas, aliás, os únicos sucessos do disco: Here Comes the Sun e Something, apesar de a gravadora insistir em divulgar Come Together. Através da criatividade e competência, ele iria desempatar o escore em pouco tempo. Era questão de meses. Os dois caciques ficaram com mil pulgas atrás da orelha. Que rumo tomaria a banda mais famosa que Jesus Cristo, levando em conta o desinteresse cada vez maior de Lennon, que migrava pouco a pouco para outras paradas engajadas politicamente e o flerte descarado de McCartney com o pop comercial? Era hora de tomar uma atitude concreta. No mesmo ano (1970) que o bonitinho chamou a imprensa (para surpresa dos outros componentes) e decretou unilateralmente o fim da banda, Harrison lançou um disco triplo (All Things Must Pass), provavelmente a maior ousadia (em todos os sentidos) do mundo do rock. Até então, o único álbum da música popular com três discos tinha sido o Woodstock, mas de um cantor só, foi o primeiro (e único até hoje). Eram músicas que estavam engavetadas em virtude do boicote generalizado que tinha sofrido nos últimos anos.

 

Mais: foi o beatle que se deu melhor na carreira solo, sem dúvida. O maior baladeiro, o mais inspirado, o mais autêntico, a melhor voz, o melhor poeta. Harrison não renegou seu passado, acrescentou toques de sua maturidade mística e só parou de compor quando morreu de um tumor no cérebro. Mamãe sabia das coisas.

Furio Lonza

Escritor e dramaturgo

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Rio de Janeiro

 

Arte Printerest

Julho 2020