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HUMANOIDES, PARADOXOS E JACARÉS

A coisa mais difícil para os animais humanos é entender – e lidar – com as características fundamentais da sua existência. Aquelas que, acredito, os define ontologicamente: os paradoxos, as contradições, as ambiguidades e as ambivalências. Toda a nossa experiência com as coisas do mundo é paradoxal, inexata, relativa, inconclusa e incerta. Os significantes têm vários significados que geram controvérsia e conflito. Essa, talvez, seja a marca principal da espécie que criou culturas, ciências, artes, religiões e demais formas de saberes muito variados. Chamam a si mesmos de homo sapiens sapiens, mas as vezes agem de forma mais insensata do que seus ancestrais peludos jamais fariam: os homens, esses macacos pelados, podem mesmo ter involuído, se olharmos as escolhas que têm feito, mundo afora.

 

Humanoides lidam muito mal com o entendimento complexo das coisas do mundo. Ou se fecham em paradigmas que negam as contradições e acreditam em verdades únicas e atemporais, ou viram relativistas, achando que a verdade é algo anacrônico, impossível. Em outros termos, ou é determinismo, ou é relativismo total, niilismo mal disfarçado, zoeira com tudo (até com o voto, que pode decidir se, nos próximos anos, a vida vai ser apenas ruim ou virar calamidade pública).

Um primeiro exemplo que posso fornecer dessa hipótese é o que estamos a viver agora, com a pandemia de covid-19 e a relação ciência x senso comum. Toda a minha formação como psicóloga e cientista social eu afirmei a necessidade de 

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questionar a ciência moderna e o método científico como único critério para produzir conhecimento válido. A arrogância da ciência moderna, que se augurou o direito de ser o único conhecimento verdadeiro, arrastou à condição de resíduo, magia, superstição ou ignorância, todos os conhecimentos que não cabiam nos seus cânones. Com isso, reforçou as desigualdades, no processo que Boaventura de Sousa Santos e Paula Meneses chamam de injustiça cognitiva. O senso comum, os saberes dos povos tradicionais, o conhecimento cotidiano do povo periférico, dos camponeses, nada disso teria valor, diante da ciência que teria a verdade na mão. Boaventura chama isso de razão arrogante, típica da ciência eurocêntrica/nortecêntrica que vem reproduzindo desigualdades e exclusões desde o século XVII.

Pois bem, eis que hoje nos vemos obrigados a defender a ciência e o tipo de conhecimento rigoroso e fundamentado que ela produz, no caso da saúde pública e das vacinas. Paradoxal, não é? Sim, bem vindos ao mundo humanoide. A ciência, lá pelo século XVII, XVIII, teve de romper radicalmente com o senso comum para se estabelecer como um conhecimento diferenciado, metódico, justificado e fundamentado.

 

Daí a diferença entre ciência e senso comum, que é um conhecimento sem fundamentação, sem rigor, a famosa ‘opinião’.

Acontece que ele não está sempre errado, não é bom ou ruim por si só; pode ser tanto uma valiosa experiência adquirida de modo não sistemático, como uma opinião idiota, adquirida com vídeos de ‘influenciadores’ reacionários no Youtube. Nossas sábias avós sabiam qual chá fazia bem para doenças mais simples, mesmo que desconhecessem seu princípio ativo; esses conhecimentos, passaram para suas filhas, que os passaram para nós. Isso é um exemplo de conhecimento assistemático do senso comum que é valioso e útil.

 

Quanto à ciência, são muitas as suas ramificações, áreas de atuação, métodos, objetos de estudo, resultados e uso que se faz deles; algumas reconciliaram-se com o senso comum, estabelecendo uma aliança produtiva com ele, outras continuam atuando contra ele, menosprezando-o, ignorando-o ou demonizando-o. No caso da ciência da saúde pública ou saúde coletiva (este último um termo brasileiro), a noção de bem comum é fundamental. E eis que agora parte do senso comum se volta contra a ciência, sendo reforçada por governantes inescrupulosos, praticantes de uma necropolítica genocida, presidida por uma pulsão de morte tétrica. E nós, que sempre criticamos o afã da ciência de legitimar-se como único conhecimento válido, temos agora de defendê-la com veemência e militância: é ela que tem de orientar as ações numa pandemia global de trágicas consequências. Não é a opinião da sua tia, nem do seu vizinho reacionário. Isso é apenas senso comum de má qualidade, sem serventia para ninguém.

 

Outro exemplo: o sistema multilateral da ONU. Sabemos que não tem a efetividade que deveria ter, que cede às pressões dos poderosos, que tem limites, especialmente quando o assunto envolve os EUA e seus interesses. Não há uma resolução satisfatória para conflitos internacionais graves e, em geral, não há pressão efetiva sobre os atores do grande capital, como as corporações descumpridoras de legislação ambiental e trabalhista. Mesmo assim, precisamos acreditar no multilateralismo e defender o legado das declarações de direitos humanos como orientador da ordem jurídica dos países e das relações das pessoas entre si. Criticar a ONU e defender suas proposições, ao mesmo tempo; e é aí que reside o problema.

 

Humanoides são ruins para entender o ao mesmo tempo, para substituir o isso OU aquilo pelo isso E aquilo. Para eles, ou é uma coisa, ou é outra; pensam através de dicotomias estáticas, como ruim-bom, feio-bonito, branco-preto, racional-irracional, certo-errado, verdade-mentira, homem-mulher, primitivo-desenvolvido etc. Há diferentes nuances entre essas categorias todas. É aí que reside a dificuldade dos humanoides pouco afeitos à atitude crítica e reflexiva diante das coisas; pois essa atitude leva à relativização de algumas certezas e a buscar o possível quando o desejável não for factível.

 

Pode-se citar outros exemplos; me ocorrem pelo menos dois mais. O primeiro é sobre os partidos políticos, hoje tão demonizados. São, por certo, instituições desgastadas por atuações questionáveis e atitudes pouco republicanas ao longo das crises políticas do país. Contudo, são e foram importantes e fazem parte do sistema democrático de representação política; no Brasil, contribuíram muito no processo de redemocratização e retomada da vida coletiva em uma democracia, em meados dos anos 1980. Então, esse ódio anti-partido (cinicamente capitaneado por quem fez parte de partidos por 30 anos, se locupletando na estrutura partidária) está mais a serviço dos maus partidos do que da democracia em que todos eles foram formados. A democracia eleitoral atrai os bons e os canalhas - e toda a massa multiforme no meio deles.

 

Haja reflexão cuidadosa e informação constante nas melhores fontes para separar o joio do trigo; pois sem a democracia já vimos que é bem pior, em 24 anos de ditadura.

O segundo caso: a indústria farmacêutica. Sabemos, sim, que os gigantes do setor têm vários crimes nas costas... o que motivou o médico dinamarquês Peter Gotzsche a chamá-las de máfia, no livro Medicamentos Mortais e Crime Organizado (editora Bookman, 2016). Existem e circulam também as teorias da conspiração acerca da Big Pharma, que pegam pedaços de verdade e os potencializam com toques de ficção. No entanto, essas empresas fazem pesquisa, desenvolvem medicamentos que precisamos e, por vezes, temos necessidade delas produtivas, para ter acesso em larga escala às medicações e vacinas que vão manter as populações imunizadas e com tratamentos disponíveis. Aliás, bons tempos em que tínhamos um governo que quebrava patentes das poderosas/gananciosas farmacêuticas para poder tratar soropositivos e doentes de AIDS, né?! Em 2007 a gente era feliz e... bom, eu acho que sabia.

 

Ainda mais um exemplo: nossos profissionais da saúde, médicos, enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas, a lista de profissões da saúde é longa – que têm se matado e adoecido de tanto trabalhar, combatendo a pandemia, na linha de frente do cuidado. São verdadeiros heróis e heroínas. Outros profissionais da área da saúde, contudo, louvam o atual presidente, receitam Cloroquina e Ivermectina como salvadores, afirmam que quem tem ‘tratamento precoce’ não precisa de vacina. O campo está dividido, o que levou uma amiga médica a usar a terminologia medminion, que se refere aos médicos partidários do atual governo (que, infelizmente, abundam) e se colocam contrários à necessidade de vacina. Esses profissionais frequentaram as mesmas boas escolas de medicina do país, públicas e privadas. Então, que pasa?

Passa que os humanoides são assim, pouco afeitos à racionalidade das coisas (independentemente do nível de educação formal), tendo grande dificuldade de criar consensos mínimos. Funcionam mais na base dos afetos (positivos e negativos), das ideologias que os subjetivam e abraçam, da religiosidade. Alguém duvida da enorme importância das profissões da saúde para o nosso bem estar? Acho que ninguém. O que não significa que não se possa criticar maus profissionais em qualquer área; ao fazê-lo, não se está desqualificando uma classe profissional inteira. O problema é que áreas como a medicina e o direito funcionam na base de um corporativismo feroz, que repele crítica e autocrítica – necessárias para a renovação e a melhoria - como algo ameaçador e ofensivo. Criticar a medicina e defender os profissionais de saúde, tudo ao mesmo tempo agora, mais uma demanda perturbadora da realidade que vivemos.

 

Ainda no campo médico, temos mais um exemplo na disputa tecnologia x natureza dos processos fisiológicos, como no caso do movimento social pela humanização do parto e do nascimento, que acompanho de perto. Ninguém discorda que a tecnologia salva vidas e as mulheres e seus bebês têm direito a acessá-la. A luta do Movimento é para ter respeitada a fisiologia natural do parto, quando este tem risco habitual (baixo). Excesso de tecnologia, cirurgias, ocitocina sintética, hospitalocentrismo, podem prejudicar mais que ajudar; são recursos importantes somente quando corretamente indicados, ou geram iatrogenia e desfechos ruins. Alguns médicos, furibundos, chamam as mães militantes de ‘indías’, ‘hippies’ e as amaldiçoam por atrapalharem suas agendas tecnologicistas/financeiras. Quem não conhece o problema, sugiro assistir à trilogia de filmes O renascimento do parto; já está na Netflix. Aqui o chamado good old common sense, ou sábio bom senso, aponta: o melhor é o mais natural e fisiológico possível, mas tendo acesso à tecnologia hospitalar e medicamentosa quando ela for realmente necessária, jamais por conveniências corporativas venais de médicos que querem organizar seu calendário antecipadamente.

 

São muitos os exemplos que mostram que precisamos examinar cada situação em seu contexto, que é sempre singular e demanda solução ad hoc. Nem sempre protocolos e padrões são a melhor escolha, mesmo que sejam necessários e importantes. Isso se aplica à vacinação em massa, vital em tempos de pandemia: temos de priorizar o conhecimento científico e contar com articulações entre o Estado e o setor farmacêutico privado. Porque o contexto assim o exige e o bom senso, ou senso comum sábio, sabe disso.

 

Então, as posições intransigentes não são as indicadas.

Finalmente, porque não posso passar das quatro páginas segundo me avisou o Gilmar, o exemplo da religião. O sociólogo Max Weber demonstrou bem como religião é cultura e a cultura ajuda a moldar ações, comportamentos e crenças. As religiões institucionalizadas têm dolorosos crimes nas costas – cruzadas, ‘santa’ inquisição, venda de cadeiras no céu, homens-bomba que matam milhares e mais recentemente o neopentecostalismo conservador tem feito muito estrago mundo afora.

 

Mas também não se pode ignorar que a janela aberta para a transcendência que a religiosidade/espiritualidade proporciona faz bem a muita gente, cuja fé sustenta e alenta durante a caminhada da vida. Há ainda as versões oriundas da Teologia da Libertação, produto latino-americano, que interpretam a mensagem de Cristo como necessidade de promover justiça, solidariedade e amor aqui na Terra, sendo comunitarista e politizada. Figuras como a pastora Lusmarina Campos Garcia, o pastor Henrique Vieira, o padre Julio Lancelotti, o ex-frei Leonardo Boff, D. Oscar Romero, D. Paulo Evaristo Arns e irmã Ivone Gebara são alguns exemplos de dedicação às boas causas desse mundo. O próprio Papa Francisco também o é. Ou seja, não convém igualar religião e sua prática à ‘ignorância’, o que vejo alguns amigos fazendo e sempre aviso que discordo deles.

 

Atualmente, porém, o que temos visto é uma mistura explosiva de fanatismo religioso, fakenews em massa, preconceitos, reacionarismo, homofobia e racismo, tudo isso sendo elevado ao status de ‘virtude’ por versões conservadoras de religiões institucionalizadas. Um senso comum da pior qualidade, alimentado por escroques da laia de Olavo de Carvalho e similares, usa a religião na sua pior versão para manipular quem assim o deseja. Sim, está cheio de gente ansiosa para ser manipulada, desde que encontre um grupo de ‘iguais’ que o acolha e o faça sentir que pertence a uma ‘causa’, porque isso gera sentido na vida.

 

Finalizando, quero argumentar porém que há coisas que não são relativizáveis, embora a relativização seja importante. A própria afirmação tudo é relativo contém em si mesma sua negação, já que ela faz parte do ‘tudo’; então, ela mesma é relativa. Bom, se posso relativizar a premissa de que tudo é relativo, pois essa proposição também pode ser condicionada, chegou a hora, ao final deste texto.

 

Mas o que, então, não é relativizável? Que temos um (des)presidente chefe miliciano, bandido, antes aquadrilhado no condomínio vivendas-da-barra-pesada, que milhões de irresponsáveis obnubilados mandaram para o Palácio do Planalto. É ignorante e tosco, mas também espertalhão; envolvido com rachadinhas e outros crimes, mesmo assim um bando de idiotas o idolatra e sua rede de fake News e desinformação, agora financiada com dinheiro público graúdo, segue obtendo sucesso. Para esses, não existe boa ciência, não existe senso comum inteligente, útil e sensato. Tudo é reduzido à pior pseudo-ciência delirante e ao pior e mais baixo nível do senso comum, em que impera o preconceito, o ódio, a pulsão de morte, o tiro no próprio pé.

 

O resultado está aí: rumo às 200.000 vidas perdidas e ao desmonte de um país que parece sempre se boicotar, em looping. As instituições ‘seguem funcionando’ no modo eterno boicote ao projeto de nação moderna onde haja igualdade de oportunidades e vida digna para todas as classes e grupos sociais. Então as circunstâncias, meus caros e caras, são essas. Boa sorte aos humanoides; eles vão precisar. Quanto a mim, eu estou aqui me transformando em jacaré, preventivamente, mesmo antes da vacina chegar.

Marilia Verissimo Veronese

professora e pesquisadora na área

de ciências sociais.

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Porto Alegre

fevereiro 2021