SOMENTE O ESSENCIAL
ilustração Osvaldo Pavanelli
Quando a Pandemia começou trazendo consigo o isolamento social, começou um fenômeno que, apesar de ser meio óbvio, pode ter passado batido pra muita gente: as pessoas rápida e instintivamente escolheram, entre todas as várias outras, aquelas que consideravam absolutamente essenciais em sua vida e quarentenaram-se com elas.
Se tua mãe, teu pai, teu filho ou seja lá quem for te ligou, ou se você ligou pra eles para combinar como seria o isolamento social de vocês NO MESMO LUGAR, não se engane: você é absolutamente essencial para essas pessoas e vice-versa.
Então eu soube logo no início dessa tragédia a quem de fato sou essencial: à minha mãe idosa, de quase 80 anos, que mora na cidade vizinha à minha em companhia de meu irmão autista de 57 anos.
Nas condições normais de temperatura e pressão anteriores, a doméstica dela ia três vezes por semana fazer o serviço de casa, mas minha mãe a dispensou, claro, como muita gente conscienciosa fez, para cumprir com os ditames do isolamento de idosos.
Lá fui eu para Taubaté, a cidade dela, de mala e cuia, mais com cuia do que mala, e começamos a cumprir o isolamento social que todo mundo falava que tinha de fazer mas que muitos não fizeram com a seriedade necessária, mas devo dizer que esse não foi o caso de minha mãe: ah, essa começou o isolamento muito direitinho, ela tem TOC e parâmetros de higiene que fariam o protocolo de desinfecção da NASA parecer uma verdadeira imundície.
Lá pela segunda semana, fui incumbido pela Sinhá-Mãe de uma importante missão: sair para comprar a revista especializada em automóveis que meu irmão, mesmo sem saber ler, adora folhear para apreciar as fotos.
Autistas em geral não negociam e nem lidam nada bem com fustração, portanto aquela missão era de suma e fundamental importância para o bom andamento dos humores quarentenais.
- Na banca do centro! - ela disse, assertiva e peremptória (ela já foi diretora de escola pública).
Moleza, pensei, que centro que nada, vou na banca mais próxima aqui no bairro mesmo, compro a bagaça e volto rapidinho.
Logo vi que seria mais fácil pensar do que fazer, pois após percorrer várias quadras, nadinha de banca.
Ao perguntar a um transeunte morador ali da região, fiquei sabendo que há muito não havia mais bancas no bairro.
- Ih, Senhor, faiz tempo que que não tem mais banca por aqui, agora só no centro mesmo, né? - o moleque moreno, espichado e magricela me respondeu com uma expressão um tanto surpresa, como se eu também fosse um autista por não saber o que qualquer morador de Taubaté deveria saber, ou seja, que as bancas de revistas da cidade estão desaparecendo junto com as livrarias.
- Nossa, é mesmo? Quer dizer que para comprar revistas ou jornais temos de ir até o centro? – eu comentei, desapontado.
Aí a porra ficou séria, e de autista amador eu passei a ser um verdadeiro marciano de pele verde e antenas de bolinhas de ping-pong recém-chegado à Terra: - hoje em dia as pessoa lê as notícia tudo na internet, né Senhor? Por aqui ninguém mais compra revista não, por isso as banca daqui fechô, ué - ele disparou.
- Ah sim, claro, certo… - respondi, meio sem jeito, e então emendei: - mas será que as bancas do centro estão abertas hoje? (era sábado de manhã)
- Ah, provavelmente não, claro, agora na Pandemia só tá funcionando o essencial, né Senhor?
Mesmo usando máscara e com apenas meus olhos de fora, ele conseguiu perceber minha cara de espanto e incredulidade e arrematou, sem dó nem piedade, o comentário final lacrador:
- É, uai: banca, livraria, isso aí tudo é supérfluo, cultura não é essencial, né Senhor?