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A MULHER ESTABANADA

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Desde que o mundo é mundo, alma e figura femininas são exaltadas pela música popular brasileira. ‘Madalena’, ‘Luiza’, ‘Dandara’, ‘Anna Júlia’ e tantas outras se tornaram clássicos e seguem inspirando muita gente por aí. Há quem prefira dedicar suas canções a determinados nichos. Nisso, o Roberto Carlos é um especialista. Ele já homenageou a mulher baixinha, a mulher de óculos, a mulher de quarenta, a mulher gordinha. Mulher padrão, pelo visto, não tem vez com ele. Há, porém, um tipo que é sempre esquecido pelos grandes artistas deste País: a mulher estabanada. Eu, que sou uma legítima representante desse grupo e que atribuo à minha altura a culpa pelo meu jeito atrapalhado de ser, acho que merecemos uma homenagem. Uma bossa-nova, um pop, um samba-enredo, não importa o quê. A mulher estabanada quer ser eternizada em verso e prosa.

 

A mulher estabanada aprende desde cedo que é importante se manter vigilante, embora isso nem sempre seja suficiente para evitar que ela se machuque. Já na infância, algumas têm de lidar com desconfortáveis calçados ortopédicos porque há a suspeita de que uma provável má formação dos pés explique seus frequentes tombos. Eu, que sou uma mulher estabanada de época, sou contemporânea da famigerada bota ortopédica, uma arma branca, 

por assim dizer. Sim, porque além de saber que atenta contra a própria integridade física, a mulher estabanada tem consciência de que, eventualmente, também põe em risco a integridade de quem se aproxima dela. Mas não se preocupe. A maior vítima da mulher estabanada é ela mesma.

 

Tenho para mim que o meu desajuste tem um fundo emocional. Falo só por mim, claro, porque não cheguei a cúmulo de generalizar, de achar que uma virada de pé ali, uma mão furada acolá são frutos de um trauma de ordem psicológica. Eu não seria capaz de tanto atrevimento. 

 

A mulher estabanada é alvo do julgamento alheio. Ela se culpa, ela tenta ser uma pessoa menos atrapalhada, mas seus esforços nem sempre surtem efeito. Ela é motivo de chacota, é temida, é falada. Se bobear, até apontam para ela na rua. “Desculpa” é sua palavra de lei. Ela se desculpa o tempo todo, até quando não tem culpa. Acontece. É raro, mas acontece. Pisões, arranhões, encontrões e toda sorte de “ões” involuntários são tão comuns no seu dia a dia quanto fake news em grupos de Whatsapp da família. A mulher estabanada até tenta ser carinhosa nas suas relações, mas nem sempre se faz entender. Muitas vezes, a mão que agride instintivamente é a mesma mão que pretendia fazer um carinho.

 

As calçadas de pedras portuguesas, as cômodas, as maçanetas e as quinas de mesa são suas inimigas declaradas. O roxo na perna é um eterno companheiro. A mulher estabanada, sobretudo a alta que não tem noção de espaço, até se afeiçoa com os hematomas que ela mesma provoca e que, volta e meia, lhe fazem visita. Mas a mulher estabanada não se limita a isso. Ela sabe explorar muito bem o seu potencial destrutivo em outros terrenos. Ela liga o liquidificador sem tampa, ela vê ir embora um naco do dedo ao cortar uma laranja em quatro gomos e ela não consegue evitar uma queimadura de primeiro grau ao levar uma leiteira fervendo do fogão para a pia. Tudo, claro, sem querer. Mas, atenção: não confunda com a mulher distraída. Esta é uma espécie de prima de segundo grau da mulher estabanada. Eu, não por acaso, tenho os dois talentos. Cozinhas costumam ser cômodos pouco recomendados para ambas, inclusive. É prudente evitar.

 

“Ué, mas ser estabanado não é uma exclusividade feminina”, você deve estar pensando. Não mesmo, mas o homem é mais acolhido. Não é drama meu, eu juro. Pode reparar. O homem desajustado é mais aceito socialmente. Há quem diga que é até charmoso. A mulher estabanada que, por exemplo, vai para a rua, não percebe que o vestido está preso na calcinha e que a bunda está à mostra é incompreendida. Se deixa escapar um peito num movimento mal calculado, então, é digna de pena. Ela não é exibida, pode acreditar.

 

Ela só não tem 100% do controle dos próprios movimentos. 

 

O texto ficou autodepreciativo, eu sei, mas é realista também, pelo menos para mim e sei que represento uma classe que só não é invisível porque deixa rastros por onde passa. Vivo à caça de oportunidades para mostrar quão plural a mulher estabanada pode ser. Ela é inspiradora. Os grandes compositores estão marcando bobeira. E a verdade é uma só: nossa vida é um eterno canteiro de obras com a placa “estamos há 0 dias sem acidentes” porque não há um dia sequer sem um pequeno contratempo na vida da mulher estabanada. Mas a mulher estabanada se acostuma. Ela aprende a lidar com as adversidades. Ela até ri de si mesma. Ela se engasga bebendo água, ri no meio e se engasga de novo. Ela só quer ser compreendida e ouvir sua saga cantada por multidões. Ouvir de casa, sentadinha no sofá, que é para não dar sorte ao azar.

 

É mais seguro.

 

Renata Andrade  

Roteirista

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Rio de Janeiro

fevereiro 2021