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ISSO É COISA DE NOVELA

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A minha relação com o meu cabelo é tão peculiar, tão digna de nota, tão cheia de desdobramentos curiosos e reviravoltas emocionantes, que eu digo, sem modéstia alguma, que renderia uma novela. Se seria uma boa atração, eu já não sei dizer. Aí são outros quinhentos. Só sei que os meus dilemas, dores e amores dão pano para manga e deixariam embasbacada – ok, e de cabelo em pé – toda uma geração de novelistas.

 

Teria ali um pouco de tudo: drama, humor, paixão, rivalidade, revelações, ódio... A novela sobre a história do meu cabelo seria um mix de novela das seis, das sete e das nove, com o frescor de uma Malhação e a sensação de “eu já vi isso antes” de um clássico do Vale a Pena Ver de Novo. Daria para contar infinitamente tudo que venho vivendo ao longo desses meus quase quarenta anos de existência e de como fui capaz de odiar e amar o meu cabelo na mesma medida e em fases muito distintas. A novela da minha vida capilar seria cheia de emoções, definitivamente, e aqui, eu me disponho a soltar alguns spoilers.

Fui uma criança muito tímida. Eu era o alvo preferencial dos colegas de turma que riam e debochavam do meu cabelo naturalmente crespo e cheio de vida. A luta antirracista, tão necessária e tão debatida hoje em dia, fez falta na infância dos anos oitenta, começo dos anos noventa. A criança negra que eu fui cresceu ouvindo todo tipo de absurdo e acreditou em muitos deles. Direta ou indiretamente, a mensagem que eu recebia era a de que o crespo era feio e era sinônimo de cabelo ruim. Não há autoestima que se mantenha inabalada diante disso, sobretudo quando se tem 8, 9, 10 anos de idade. Passei toda a minha infância sem referências negras nos programas de televisão e na publicidade, só para citar dois exemplos, que me dissessem que tudo certo ter cabelo crespo, que tudo bem não ter uma longa cabeleira loira e não ter physique du role para ser paquita da Xuxa. O drama da não aceitação do cabelo na infância era digno de capítulo especial de novela do horário nobre.

 

A adolescência chegou e, com ela, toda a insegurança típica dessa fase da vida. Menos tímida do que antes, mas mais convicta do que nunca de que meu cabelo não era um bom aliado, resolvi que quanto menos ele fosse visto em sua mais exibida forma, melhor seria. Eu era uma carcereira implacável de um cabelo mantido preso em regime fechado e sem direito a banho de sol. E assim foi ao longo de toda a minha adolescência.

 

Um novelão que se preze, tem um vilão bem maniqueísta, tão envolvente quanto repulsivo, e eu, é claro, tive os meus: os procedimentos químicos. Certa vez, achei razoável passar em mim mesma um produto fortíssimo, coisa que uma garota desajustada e insegura é capaz de fazer para se encaixar nos padrões e ser aceita. O resultado não poderia ter sido mais desastroso: uma queda capilar que jogou a minha pouca autoestima no chão. De uma adolescente insegura e com crise de identidade, eu me tornei uma adolescente insegura, com crise de identidade e semicareca. Sim, semicareca porque meu cabelo começou a se desprender aleatoriamente da minha cabeça, o que me impossibilitava de fazer um simples rabo de cavalo, o feijão com a arroz dos penteados.

 

No começo da fase adulta, a coisa tomou um novo rumo. Resolvi que, ao tirar sarro de mim mesma, que ao falar para os quatro cantos que o meu cabelo me odiava, eu tirava de mim o protagonismo da história e jogava para ele a culpa de todos os traumas que vivi, como se alguma culpa ele tivesse. Era como se Renata e cabelo da Renata fossem portadores, cada um, de um CPF próprio. Mas era autodefesa. Eu achava que assim, que ao rir de mim mesma antes de qualquer pessoa e que ao dizer nas entrelinhas que o meu cabelo era o pior de mim, eu estaria protegida. Anos depois, ainda refém de alguns procedimentos químicos – desta vez sob os cuidados de profissionais –, eu descartava qualquer possibilidade de usar meu cabelo tal como ele era. Ver beleza na cabeleira crespa e volumosa ainda estava completamente fora de cogitação e manter os fios domados era urgente.

 

A maturidade chegou e, com ela, a certeza de que a transição capilar é uma via interessante, necessária e urgente. Esse momento é, sem dúvida, um capítulo à parte. Falar de reconhecimento, de aceitação, de valor e de amor às origens mexe tanto com a autoestima da mulher negra, que ela não pensa outra coisa que não se libertar de tudo que a coloca como antagonista de sua própria história. Eu me atrevo a afirmar que a transição capilar é, a princípio, o terror de dez em cada dez mulheres, uma vez que exige que a gente abra mão de tudo o que nos coloca numa previsível zona de conforto. Mas a gente sabe que é preciso enfrentar todos esses medos para se reconhecer, enfim. Porque a sociedade vem mudando, novos conceitos vão entrando em cena e é o papel da mulher, especialmente da negra proprietária de uma vasta cabeleira crespa, administrar tudo isso a fim de entregar para a audiência uma história com um bom enredo e com todos os elementos que uma boa novela deve ter. Protagonistas fazem assim.

Renata Andrade

Roteirista

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Rio de Janeiro

 

Foto Printerest

nov 2020