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DE JOÃO A JOÃO

 

Todos nós, muito provavelmente, conhecemos algum João, nem que seja o João Batista, o homem que batizou Jesus nas águas do Jordão, ou o Vovô João da Cabinda, um preto velho da falange das almas na umbanda, ou ainda, Joãozinho da Goméia, importante babalawô do Rio de Janeiro cujo terreiro hoje se encontra em ruínas no município de Duque de Caxias - RJ.

 

Formalmente o nome "João" tem seu significado ligado à providência divina.

Para mim, o significado de João está ligado à família, mais especificamente à minha família. O nome do meu irmão mais novo é João Cândido, que nem completou a sua primeira década de vida.

 

O nome do meu irmão não tem inspiração na bíblia ou religião. Seu nome tem origem em um herói da população negra que nas águas da Guanabara fez famoso o seu nome, comandando sozinho uma frota de diversos navios militares com seus canhões apontados para a cidade do Rio de Janeiro e requisitando uma série de demandas, dentre elas que fossem extintos os castigos corporais aplicados nos marinheiros, sobretudo negros, através de uma prática conhecida como "tribunal do convés" (Sobre o tema, leiam: A ressaca da marujada, do historiador negro Álvaro Pereira do Nascimento).

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Com nove anos completos nesse tenso ano de 2020, João Cândido, o meu irmão, seria cinco anos mais novo do que um outro João que, como nós, era negro, tinha sua casa no subúrbio da cidade do  Rio de Janeiro. Esse João era João Pedro, um menino de uma família cristã que, mesmo sem ele ou sua família terem qualquer envolvimento com o tráfico ou outra forma de banditismo, teve a sua vida ceifada de forma violenta enquanto brincava dentro de sua própria casa na comunidade do Salgueiro. Após ser alvejado por diversos disparos e falecer, seu lar é invadido pela polícia que leva, sem aviso o corpo de um menino, um  menino de apenas catorze anos que brincava dentro de sua casa. Seu corpo só apareceu após uma enorme comoção social, dessa forma sua família pode fazer um enterro digno para a criança e, não fosse mais um número dos indigentes mortos nos autos de resistência.

 

Meu irmão, o João Cândido tem sonho de se tornar um cientista, sonha também em criar bichinhos, como galinhas, coelhos e tartarugas, para que outras crianças possam ter contato com outros tipos de animais domésticos e possam se divertir mais com outras coisas que não só brinquedos e eletrônicos. Sim, isso são os sonhos que uma criança que, com menos de dez anos já se identifica como afrodescendente e teve o seu aniversário nesse 2020 o tema da série de quadrinhos adaptada para o cinema Pantera Negra, personagem brilhantemente interpretado por Chadwick Aaron Boseman (deem uma olhada na filmografia desse cara). Entretanto não sei quais eram os sonhos do menino João Pedro, não porque não o conheço, mas porque nunca conseguirei conhecê-lo. E o motivo disso não é a distância, divergência de idéias ou mesmo política que afastou tantas famílias e amigos. A causa que eu nunca conseguirei saber dos sonhos de João Pedro é porque o Estado Brasileiro ao longo de mais de um século vem desempenhando muito bem uma política de genocídio da população negra e periférica.

 

O presidente fala que é "mimimi" ou "vitimismo". O vice fala que “não existe racismo” e que estamos tentando importar algo dos EUA. Ok podemos não chamar de racismo. Trabalhemos com essa hipótese.

Como explicamos o abismo social que existe entre brancos e negros, desde o representativo em todas as esferas de poder e lugares de destaque, à disparidade salarial ou de números de desempregados? Somos maioria da população, mas não somos maioria nesses lugares? Como o próprio vice-presidente falou, a desigualdade social no Brasil “tem uma cor mais característica”. E eu complementaria, nos autos de resistência, também, nos que passam fome, adivinhem? Também. E, novamente, como explicamos tudo isso?
 

Sei que ainda não temos intimidade, leitor, mas te dou a minha palavra que a cor dessa gente que é morta por tiro e arrastada no asfalto por um camburão da PM(Cláudia da Silva Ferreira) não é branca. Me explique a causa disso? Me explique por que o corpo que sangra no subúrbio tem a mesma cor que o João, Cândido e Pedro e eu. Ok, não é racismo, mas como parte dessa pátria que vocês fazem questão de exaltar que é a da Democracia Racial, democraticamente eu reivindico o direito de não ser o alvo preferencial da revista aleatória, do “disparo de aviso” da polícia - também conhecido como auto de resistência -, de não ser a maioria dos corpos anônimos nas valas dos subúrbios ou dos corpos com sangue pisado no asfalto.

Falando em sangue pisado, na véspera do dia que grande parte da população elegeu para poder falar abertamente de combate ao racismo e chamar pessoas negras para palestrar sobre cultura e história afro-brasileira, personalidades (heróis) nacionais como Zumbi e Dandara dos Palmares, Luis Gama, Teresa de Benguela, João Cândido, Lima Barreto, Maria Firmina dos Reis e tantos outrxs; tratar de temas como o "antirracismo", "equidade racial", "ações afirmativas" e etc. etc., o Grupo Pão de Açúcar, dono dos supermercados Extra, Assaí, Pão de açúcar e Carrefour, tem seu nome atrelado a um crime, um assassinato de um homem preto. O mesmo Grupo Pão de Açúcar, cujos mercados nas áreas nobres, sobretudo o Pão de Açúcar, são conhecidos aqui no Rio de Janeiro por agredir moradores de rua de qualquer idade, sobretudo negrxs, até mesmo por passarem na calçada dos estabelecimentos. O mesmo Grupo Pão de Açúcar que em outras lojas do grupo como no Assaí e Extra, expulsam violentamente moradores de rua, mesmo quando estes só estão em busca de água em um dos bebedouros que na maioria das vezes se encontram no interior da loja próximos aos caixas.

 

Na madrugada de 19 para 20 de novembro desse ano (2020), enquanto escrevia a minha dissertação de madrugada, na parte externa da casa de minha avó para ter o privilégio do ar mais fresco e do silêncio que permeia essa parte do dia e ter condições de escrever melhor no único horário que a minha rotina de trabalhar e estudar me permite, um amigo de um coletivo negro da Universidade de Santa Maria - RS me manda uma mensagem onde eu lia, "só abra o vídeo se tiver de boa. Menos um homem preto no mundo. O Estado genocida sorri e a gente, preto, chora". Num link de vídeo do facebook, um conteúdo aterrador. Um homem preto sendo espancado até a morte por seguranças do Carrefour, um dos mercados do Grupo Pão de Açúcar. Seu nome? João, não Cândido ou Pedro, João Alberto, conhecido como Beto que, como João Cândido, João Pedro e eu, era afrodescendente. Morador de um estado que tem Rio em seu primeiro nome, mas que fica mais ao sul do Brasil. Seu destino? Espancado até a morte quando se encaminhava à saída do carrefour após sentir vontade de comer legumes, ir ao mercado para comprá-los e pagar suas compras, na companhia de sua esposa.

 

Acredito que nós, pessoas negras, em dado momento da nossas vidas, escolhemos entre três caminhos, ou ignoramos as mortes dos nossos em prol de conservar à saúde mental, sobretudo nos tempos precários que a pandemia de covid-19 nos impõe; segundo, entramos numa espiral de raiva, tristeza e dor, que cedo ou tarde irá culminar numa explosão de sentimentos e lugares que destilam o racismo em nossa sociedade, à exemplo do que aconteceu pouquíssimo tempo atrás nos EUA após as mortes de diversos integrantes da comunidade negra Norte Americana, dentre elxs, Breonna Taylor e George Floyd; por último existe a possibilidade de equilibramos as duas opções anteriores e alternamos entre os momentos de indiferença e os momentos de querer ver em chamas toda a rede pão de açúcar, em todo o país.

 

Para quem não sabe, já é o segundo assassinato performado por essa rede de mercados que vem à publico só nesse ano. O primeiro foi de Pedro Henrique, morto por asfixia por um dos seguranças do extra, na Barra - RJ. Houve ainda outro episódio bizarro novamente no Carrefour onde após sofrer um infarto e falecer, Moisés Santos de Recife - PE, teve seu corpo, que se encontrava caído no chão coberto e nada mais, o supermercado continuou a funcionar normalmente por mais de uma hora, até que um dos clientes percebendo que se tratava de um cadáver, chamou as autoridades e, algum tempo depois a loja foi fechada.

 

O gatilho, ou o murro, para esse texto foi o João, Pedro, Alberto e Cândido. Desde que vi a cena de João Alberto sendo assassinado, não paro de pensar em que tipo de mundo está sendo construído para jovens e crianças como João Cândido e João Pedro. Mais do que isso, penso como João Cândido, a qualquer momento pode se tornar um João Pedro ou, futuramente um João Alberto. Isso me rói a alma.

Já pararam pra pensar como essa coisa de ver pessoas pretas sendo mortas todos os dias, influencia em diversas coisas, até mesmo na escolha de parceirxs para ter filhxs, ou mesmo na decisão de pessoas pretas em não terem filhxs? Constantemente eu me questiono sobre o tema, se eu desabaria sabendo que a minha prole foi estuprada, morta de forma violenta ou qualquer coisa do tipo. Qual seria a minha reação? Mais uma nota de repúdio? Mais um "não nos mate por favor na moral mesmo porque eu nunca te pedi nada"? Colocar a minha prole como mais uma hashtag seguida de "eu não quero morrer"? Já não estamos cansadxs disso tudo?

 

Não estamos cansados que nossos heróis sejam jogados na solitária pra morrer? Não estamos cansados de termos a cor da maioria de mortos por tiro, ou por violência, ou por auto de resistência? Não estamos cansados de sermos abusados quotidianamente pelo estado que se omite e corrobora que uma vítima de espancamento/assassinato, na verdade tenha morrido de infarto?

 

Como disse uma amiga ao debater sobre o tema: temos que ter os corpos no padrão escravizado, feito para trabalhar e apanhar. E se morre por espancamento, não é assassinato, é morte por condições preexistentes? Nem na morte temos dignidade ou direito de pedir por justiça?

Enquanto isso, dois rapazes foram identificados nas barcas da travessia Rio x Niterói, por crimes que eles não cometeram, entre quatro e seis anos atrás, através de fotos no facebook pela polícia de Niterói. Novamente adivinhem a cor de Danilo Felix e Luís Justino os rapazes identificados entre agosto e setembro e ainda presos, mesmo sem provas?

 

Lembrando que, segundo o vice-presidente, nada disso é racismo.

Já que, vivemos sob uma “democracia racial”, gostaria que quando o primeiro menino/rapaz branco fosse atado a um poste pelo pescoço com um cadeado de bicicleta e espancado em alguma das áreas nobres do Rio de Janeiro, que não fosse alegado "racismo reverso" ou "tentativa de implantar o comunismo no Brasil".

 

É João Cândido, peço muito aos Ancestrais, Orixás, Inkices e Voduns  que, ao contrário de João Pedro, João Alberto e tantos outros pretxs, sua caminhada seja longa e frutífera, meu irmão! Desejo que você e todos meninos e homens negros não se tornem mais um número na estatística ou hashtag.

O que o meu coração mais deseja nesse tenro momento em que escrevo é que, mesmo você não acreditando em racismo, nenhum assassinato é justificável. E se um assassinato é injustificável, o que podemos dizer sobre o assassinato de um número elevado de uma população específica? Genocídio! E você tolera isso? Você prefere mascarar isso como um debate entre aceitar ou não que isso é racismo do que se juntar à inúmeras vozes que clamam, pedem, imploram que o Estado pare de cercear tais práticas?

 

Dizem que perto do fim a verdade não toma trégua em nossas vidas, então, acho que é chegada a hora de sermos honestos um com o outro, não é leitor? E… Honestamente? Foda-se se você acredita que isso tudo não é racismo. Mas já que "somos todos pessoas" e “all lives matter”, por favor, não coloque isso só como hashtag para se opor à importância das vidas negras assassinadas brutalmente todos os dias pela violência do Estado, tudo bem? Você pode escrever o seu “All Lives Matter”, tudo bem, mas que você seja o meu escudo quando a polícia vier para cima de mim e reverbere a minha voz enquanto vidas(NEGRAS) são ceifadas!

 

Não espero de você que não acredita em racismo algum grau de coerência, juro que não. O que espero de você é a humanidade que você tanto prega e o mínimo hombridade, pois do contrário, você vai continuar sendo mais um coautor ou partícipe de de um crime hediondo, o genocídio de tantos “João”.

 

 Talvez, só talvez, se assim o fosse, o futuro mundo para João Cândido possa não se resumir a:

- não ande com as mãos dentro do casaco;

- não ande com o gorro do casaco, sobretudo de noite;

- sempre tenha as notas fiscais das coisas caras que você tem;

- não fale com policiais, nem pra pedir qualquer informação necessária;

- não corra na rua, sobretudo de noite;
- sempre ande com identidade e documento escolar ou carteira de trabalho no bolso;

- sempre ande com o telefone de emergência de um amigo PM de alta patente anotado;

- sempre ande com o telefone do advogado preto amigo da família

- nunca andar com grandes quantidades de álcool 70% ou produtos de limpeza que possam ser utilizados para fazer bombas, Pinho sol, cloro, sapólio, bicarbonato de sódio, vinagre e soda cáustica.

- Assim que tiver oportunidade, não more no Brasil ou em nenhum dos estados que nos EUA deram vitória pro Trump

 

Ou...seria melhor sintetizar tudo isso?

Bom… convenhamos leitor, a única forma de sintetizar isso tudo talvez seja: 

 

- não seja negro em sociedades racistas e/ou que pautam pelo genocídio de pessoas pretas.

Mas como não ser negro quando a primeira coisa que vêem em você é a cor da sua pele?

Vitor Gurgel

Professor de história, capoeirista e

mestrando em história social pela UFRural/ RJ 

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nov 2020