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"O JUMENTO É NOSSO IRMÃO"

Esses dias, circulou um texto de uma colunista da Folha de São Paulo, onde ela colocava uma série de adjetivos negativos, entre eles, jumento, para se referir ao senhor que ocupa a presidência da República.

 

Coincidentemente, no mesmo dia, recebi de um amigo a música: “Apologia ao Jumento” do mestre Luiz Gonzaga. A letra da canção descreve o jumento como um grande parceiro do homem no sertão nordestino. Gonzagão faz uma ode ao companheiro das tarefas mais duras da terra e da vida ordinária. Ao cantar “o jumento é nosso irmão” ele subverte a ideia do jumento como um ser inferior, dominado, escravizado e estúpido, somente dedicado a nos servir, colocando o animal num outro lugar, o da afetividade.

Há alguns anos, Padre Vieira, lançou no Ceará uma campanha para a construção do Memorial do Jumento, também conhecido como jegue. Estudioso, desde 1954, do que chama “ problemática jegue” e autor do livro “O Jumento, Nosso Irmão”, é ainda um grande defensor de políticas para proteção do animal e do meio ambiente.

 

Em 1995 o jumento foi tema de carnaval da escola Imperatriz Leopoldinense, bi-campeã na época. Além do carnaval, outras manifestações como o movimento “Jegue Dance”, mistura de forró com dance music, na Bahia, Marinalva e sua banda, Jegue Elétrico, fizeram sucesso com a “Dança do Jumento”. Muitos outros ritmos foram criados para louvar o animal.

 

Nas minhas memórias de infância, criada na zona rural, lembro que as vacas, bois, cavalos, galinhas, insetos, porcos, árvores, montanhas, rios, riachos, tudo e todos faziam parte de uma única paisagem. Esse convívio com essas multi-humanidades e multiespécies, me fizeram compreender as diferentes formas de coexistir e coabitar o mundo, na sua multiplicidade. Não se trata de humanizar o animal, nem de colocá-los como superiores, nem como inferiores, mas simétricos a nós. Trata-se aqui de olhar e sentir com outros olhos – com os olhos do outro, senti-lo em nós; e é nesse canal que acessamos os afetos, criamos novos e outros mundos e os transformamos, tudo e todos.

 

O conceito de devir na filosofia significa antes de mais nada mudar:

“ É não mais se comportar nem sentir as coisas da mesma maneira; não fazer mais as mesmas avaliações. “devir” significa que os dados mais familiares da vida mudaram de sentido, ou que nós não mantemos mais as mesmas relações com os elementos habituais de nossa existência: o conjunto todo é reencenado de outra maneira.” (*)


Usar jumento, burro, asno, anta, toupeira, como sinônimo de falta de inteligência é um exemplo da arrogância do homem. É esvaziar a palavra de todo o sentido primeiro.

Precisamos inventar outros vocabulários, outros mundos como forma de incluir os não-humanos, outras cosmologias, criar irmandades e afetos com eles.


Mais devir-animal ...


E lembrar, como mestre Luiz Gonzaga, que o jumento pode ser nosso irmão, mas o senhor presidente da república pode ser simplesmente chamado de genocida!


 

(*) “Qu’est-ce qu’un devenir, pour Gilles Deleuze?”, de 1997, François Zourabichvili

Bettine Silveira

Editora da revista Ignorância Times

Figurinista e pesquisadora de modos e modas tradicionais

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Rio de Janeiro

março 2021