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HISTÓRIA DAS CAPULANAS

Nascida Indiana Recriada Africana

 

Capítulo do livro

CAPULANAS TECIDOS QUE CONTAM HISTÓRIA

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Em torno dos séculos XI e XII, a capulana chegou a Moçambique trazida por comerciantes indianos e árabes, de forma diferente de como a conhecemos agora. As cores, os padrões e as formas de usar foram sendo adaptados e desenvolvidos na cultura africana e moçambicana, até os dias de hoje.

 

A chegada das capulanas em Moçambique faz parte de todo um contexto histórico africano, pouco conhecido, e muitas vezes menosprezado, pelo Ocidente. O desenvolvimento e a ascensão de várias civilizações na África, e suas relações com os outros continentes, é muito anterior à chegada de europeus colonizadores e traficantes de escravos. O Reino de Axum, por exemplo, na atual Etiópia e Eritreia, já no século I d.C., exercia um intenso comércio com Roma, Síria, Egito e Índia. E no séc X d.C., comerciantes árabes e swahili, que povoaram a costa oriental - do sul da atual Somália ao norte de Moçambique - estabeleceram uma rede de bazares na província de Sofala (MZ).

 

A essa altura, já se importava e se comercializava tecidos na região, embora o continente africano produzisse panos de algodão desde o Antigo Egito. A tecelagem africana atingiu ápices de excelência no séc. XII, quando a região da África Ocidental exportava tecidos finos para a Europa. Nesta época, a população do centro-sul do território de Moçambique era predominantemente do grupo étnico-linguístico Shona. Os povos Shona também habitavam o Zimbabwe de hoje e formaram uma civilização de avançada organização social e política: o Grande Zimbabwe, cujo o legado atual ainda pode ser visto nas majestosas ruínas desse reino. Portanto, Moçambique é também herdeira de uma grande civilização, erguida exclusivamente por africanos. O professor de história Rui Laranjeira, da Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, nos conta que “o comércio em geral foi estabelecido pelas elites dos estados do Grande Zimbabwe e do Monomutapa, que o sucedeu. Em troca de ouro, recebiam miçangas, porcelanas e tecidos que, depois, na sua forma mais sofisticada, com a introdução do comércio com a Índia, se transformaram no que hoje chamamos de capulana”. Mais tarde na Zambézia, região central de Moçambique, passou-se a desenvolver um tecido próprio, o machiras, feito pela população local, mas as capulanas, por conta da sua qualidade e baixo custo, ganharam maior popularidade, já que no início só a nobreza e as mulheres do comerciantes ricos usavam o pano.

 

Hoje em dia, a capulana em Moçambique é usada de um jeito único. Segundo o livro “Capulanas & Lenços” (*): “Há uma coisa que distingue a capulana que se usa em Moçambique das que vêm doutros países mais ao norte: aqui não se usam as frases impressas que caracterizam as capulanas do Malawi, Quênia ou Tanzânia”.

 

A capulana é uma cultura tradicional mas em constante evolução, e hoje em dia é cada vez mais usada para confeccionar vestuário moderno, como calças, camisas e vestidos, sem abandonar a identidade africana. Essa criatividade seria impossível de ser exercida durante o colonialismo português. “No período colonial, o design era geométrico, ao manter esse aspecto na capulana, mantinha-se a neutralidade, não havia identificação com nada. Isso mostra que as capulanas não eram inspiradas em valores moçambicanos. Havia valores que o estado colonial não permitia que fossem transpostos para a capulana. A questão da identidade verifica-se depois da independência, nesta época começam a aparecer figuras de líderes políticos e dos presidentes”, conta o professor Rui Laranjeira.

 

Após o fim do jugo colonial, em 1975, popularizou-se o costume de confeccionar capulanas comemorativas de datas históricas, como a independência, ou celebrando as mulheres moçambicanas e os heróis nacionais. Hoje em dia, há preocupação em representar a paisagem e natureza, mas também a cultura, através de danças tradicionais, evocando os festivais culturais que acontecem pelo interior do país.

 

A respeito da atual popularidade das capulanas, o professor de filosofia Ergimino Mucale, da Universidade Eduardo Mondlane, nota em Moçambique um movimento, muito interessante sob o ponto de vista da mentalidade atual: “Por mais moderno, ou pós moderno que o jovem moçambicano se ache hoje, ele muitas vezes não resiste ter uma camisa de capulana ou com algum retalho com capulana. Isso significa que estamos a voltar para a capulana, estamos a aceitar a simbologia que ela tem e estamos a juntar a simbologia antiga com a moderna. A camisa não foi um africano que inventou, mas a capulana, essa sim, tem tudo a ver conosco. Contribuímos e ressignificamos as coisas, conclui. O tecido que veio da Índia há 1000 anos, já impregnado de cultura e de seus significados, foi apropriado, transformado, recriado como africano, e mais tarde como moçambicano. Ele ganhou mais e mais elementos identitários. É hoje usado até como cortina e lençol sem ser vulgarizado, pelo contrário, valorizado como um bem pessoal e cultural.

 

As crianças moçambicanas são levadas às costas das mães em uma capulana, os mortos são enterrados com capulanas e as noivas as usam na cerimônia de casamento. Essa criação tão genuína da África passou por um rico processo de trocas culturais, chegando até ao Brasil, como veremos nesse livro. Ela cada vez mais encanta o mundo, por suas cores que vibram, seu conhecimento acumulado, sua riqueza de significados.

 

Hoje a capulana, sobretudo, fala alto, grita e entoa poesia aos nossos sentidos.

 

(*) Capulanas e Lenços. Vários autores. Coordenação editorial de Paola Rolletta. 3º Edição, Maputo, 2011.

 

 

 

Livro

 Capulanas Tecidos que Contam História

 

Bettine Silveira

Figurinista e

Pesquisadora dos saberes ancestrais e tradicionais

 

 

Foto

Bettine Silveira

 

Abril 2020