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CRÔNICA DA MICHELLE SOUZA

Descemos ambos a escada de uma paciente ruela que nos levaria a um outro lado da esquina. Naturalmente, depois de olhar para alguns experimentos pendurados no habitual leiloeiro dos Irmãos Ruby com a Praça 4 de Outubro – acenou com a mão para uma velha encostada num poste da loja ao lado. «Seja como for, mas aquele olhar abriria qualquer parágrafo de um texto meu», disse com os pés precipitando-se para um degrau meio achatado. E era tudo verdade. A cada um sua trouxa – uma série intitulada – Trouxas da minha mãe – de Ventura Mulalene me força a pensar exactamente a mesma coisa da velhinha do poste da loja ao lado. «À medida que ia sorvendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer acompanhado do estimulante sabor do vinho, o sentimento do vazio foi me abandonando e me vi de novo feliz, cheio de planos», li isso em Paris é uma Festa de Hemingway. Acredito cada vez menos – que o artista é filho isolado do seu fenómeno. 

Lembro-me disso com certa nostalgia se esquivando na memória do tempo. Eramos na altura – uma dúzia de rapazes insatisfeitos procurando um motivo para espantar a hora de ir para casa como Sartre durante os seis anos de tortura para a Náusea procurava apresentar Roquentin como revelação acabada do absurdo; essa condição humana no carácter dramático que se dá no império contingencial. Mas sobre Hemingway, o rapaz da Rue Notre-Dame-des-Champs – a Michelle – a garota de encantos singulares – fez-me reler esta parte. E a poucos instantes estávamos juntos – eu de um lado e, ela – do outro. Confesso que conseguia ver um amarelo coberto por um pano quase bordado que se espreguiça no seu corpo. 

 

Bem, são essas coisas – esses fenómenos de que me referia a segundos: um artista é filho dos seus momentos; do seu tempo; dessa circunstância de que Gasset um dia falou. Falei do amarelo escondido; do branco bordado a espreguiçar-se no corpo dela. É isso mesmo. Confesso que, mesmo com a conseguida formulação da ideia de estilização como um equivalente acertado de fracturação do real apresentada pelo espanhol d’ «A desumanização da arte», a medula do tempo, esse botão de pele sobre o crustáceo da criatividade é presente. E na altura em que começamos a falar disso, dessa coisa sobre a pretensão manienta dos artistas emoldurarem tudo, Dinho – era o único de entre nós bastante asseado e com algum grau de escolaridade aceitável. Embora, raramente passasse por ele o som lancinante do Comboio das cinco e meia, continuava a deliberar com agrado o facto de ainda estar morando a duas ruas próximas à única Estação Ferroviária do Bairro. Na esquina por onde costumavam descer pesadamente os vendedores exaustos no final do dia e, com certa vaidade inconfortável de perigo – ele fumava. Aliás, começou aí a fumar o Cachimbo. Hoje, ambos fumamos o Cachimbo. 

 

Curiosamente: três meses depois de ler Jacques Derrida – um conseguido texto sobre a sua paixão por Blanchot – encontrei uma passagem em seu livro onde estava escrito o seguinte: «sigo a fumaça com indicadores d’ um saco de perdas de um lado e, o naturalista a contestar o proprietário da ave, por outro…». E naquele texto sobre Blanchot que Derrida proferiu em uma conferência na Universidade Católica de Lovaina – Bélgica em 95 do século passado – começava a fazer sentido; principalmente, depois de ter conversado com a esposa meses depois. A literatura [ou toda a arte] deve tudo padecer, sofrer e suportar. Aliás, eu não sei se isto é apenas minha percepção – mas a Literatura tomada neste sentido – dá-se como vulnerabilidade; como esse corpo jogado à sua sorte. E quem está aí para proteger? E a poucos dias – a Michelle me falou das coisas; das coisas tantas que tem feito. Que sorte têm os meninos sob o tecto da sua voz. Mas a verdade! A verdade mesmo – é que seus cabelos estavam soltos; um amarelo por dentro de um pano branco. Não me importam agora todos aqueles que poderão chamar Fernando Pessoa para falar da Insinceridade do artista. Maldito o Fingimento Poético. Mas a obra – tem essas coisas estranhas.

Uma vez a STEIN. Sim, a Gertrude – a mãe do período que ficou conhecido como tempo da geração perdida – dessa juventude pós-primeira-guerra, exausta e tombada na contingência disse em pequeno livro que uma vez em um verão leu um livro «escrito por um dos monges da Abadia de Hautecombe, sobre um dos abades de Hautecombe, e nele o autor escreve sobre a fundação da abadia e conta que o primeiro local foi num monte perto de uma estrada bem movimentada». Então perguntou a todos seus amigos franceses o que significava uma estrada bem movimentada no século XV, se isso significava que as pessoas passavam por ela uma vez por dia ou uma vez por semana. 

 

E agora – as luzes da ponte que se projectam da varanda estão acesas. A Michelle sabe disso. Sabe também que as Rosas cor-de-rosa estão a exalar seu perfume. Como também – que há duas cadeiras na Varanda. E que tenho dores de coração – sabe. E eu também sei que hoje estava de branco. E isso é agora parte disto tudo! Então Stein tinha razão:

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«Nas artes o criador é como todo o resto das palavras vivas, ele é sensível às mudanças pois a vida e sua arte são inevitavelmente influenciadas pela maneira como cada geração está vivendo, pela maneira como geração está sendo educada e pela maneira como as pessoas se movem, tudo isso cria a composição dessa geração». Hoje – muitos não se permitem existir – ser essa palavra de estar na existência; no mundo; no acto próprio de tragar a infinidade. Os outros foram tudo isso – viveram; captaram a vida e a souberam usar. Mas hoje – em nome de uma certa terminologia – vanguardas – todos podem ser qualquer coisa em nome da arte. Maldito o Fingimento. Deus também fingiu. Traduziu-se de uma pessoa em três. Eu sei. E acho que muitos também sabem. Que Jesus é filho de Deus; fez-se homem.

 

Aliás, fez-se do verbo para a carne. Pura poesia. Uma coisa é certa: O tipo é sem dúvidas um grande poeta.

Dionísio Bahule

Escritor

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Maputo – Moçambique

fevereiro 2021