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OS SERTÕES, UM LIVRO CHAPA BRANCA

 

 

Depois que Deodoro fechou o Congresso, teve início o grande processo civilizatório rumo ao interior agreste do Brasil. Como a República tinha propostas pedagógicas bem definidas, um de seus primeiros esforços para a reeducação do povo foi bombardear Canudos com armamento alemão: granadas, morteiros, obuses, fuzis Mannlicher, canhões Krupp e Whitworth 32, metralhadoras Nordenfeld e toneladas de dinamite, assassinando indiscriminadamente jovens, velhos, homens, mulheres e crianças.

 

Ou, como disse mui apropriadamente Euclides da Cunha, em sua linguagem tecnicamente brejeira:

Os federais foram lá para disciplinar aqueles macacos sujos.

Massacre terminado, os valorosos soldados ainda degolaram os prisioneiros a sangue frio, pra não deixar semente. E botaram fogo em suas casas. E derrubaram as duas igrejas. E quebraram as imagens de seus santos. E mataram os doentes e os feridos. Como não tinha sobrado mais ninguém (pois Canudos não de rendeu, lutou até o último homem), havia um problema: faltava um suvenir. Veio a ordem: um general mandou que os praças exumassem o corpo de Antônio Conselheiro, que já estava enterrado havia um bom tempo, sujo, em frangalhos, carne apodrecendo. E o toque de mestre: os civilizados cortaram a cabeça do bárbaro, levando o crânio descarnado para a capital e outras cidades do Nordeste, expondo-o em praça pública. Teve discurso e banda de música. E foi muito comovente ver o povo exaltado & choroso aplaudindo os heróis que retornavam as suas casas e famílias. A massa pôde assistir, então, ao espetáculo mais macabro e vergonhoso da nossa História. Enfim, a glória, o triunfo das ideias modernas de Augusto Comte sobre a resistência da sub-raça nordestina (palavras do Euclides). Afinal, Antônio Conselheiro era monarquista, não era? Era, claro; acreditava na volta triunfal de Dom Sebastião, um ardiloso fantasma adolescente, comprovado inimigo da democracia.

O que mais incomoda no livro Os Sertões é que o Euclides não foi a campo (quando muito, fez alguns esboços e croquis das posições do inimigo, rastreando tudo com binóculo), não presenciou luta alguma, não entrevistou ninguém de Canudos, só descreveu o que estava nos relatórios oficiais, conversou apenas com os generais e os médicos e só deu crédito aos depoimentos dos federais, um pecado mortal para um repórter.

 

Se fosse hoje, provavelmente estaria regiamente acomodado numa das suítes de um hotel cinco estrelas, com ar condicionado, uma jacuzzi no banheiro e estaria bebericando garrafas e garrafas de água mineral de Vichy para neutralizar o calor insuportável daquele clima selvagem.

Lendo o livro, não temos a menor ideia do conteúdo dos discursos do Conselheiro em suas peregrinações pelo sertão, qual sua crença, quais suas ambições. Em momento algum, ele se pergunta o que motivou aquela gente toda a seguir o messias. É bizarro. Nada foi explorado quanto à biografia dos rebeldes, nada se sabe deles: de onde vieram, qual o grau de parentesco ou afinidades entre eles, o que pensavam. Pelo contrário: segundo as cruéis adjetivações do texto, temos dificuldade em saber se eram humanos ou animais.

 

O pior de tudo é que o Euclides tomou partido da causa do governo, comprometendo a credibilidade das informações e a isenção do texto. Só mudou um pouco o tom quando ficou sabendo das atrocidades e covardias dos soldados, com o apoio escancarado do Prudente de Morais. Nessas condições, não é fácil ler o livro, pois essa abordagem é irritante e antipática.

 

É muito difícil você topar com um livro sério de análise histórica (independente do contexto político, econômico ou social, seja ele ensaio ou ficção) que não tenha tomado o partido dos injustiçados. Não existe muita metafísica quanto a isso, não requer muita habilidade ou queima de neurônios. A questão é simples e maniqueísta: pobre só é pobre porque está sendo explorado, humilhado e roubado. A concentração de capital nas mãos de poucos é o maior problema do mundo. Sempre foi. Pobre só é pobre porque existem os ricos, que fazem as leis para que isso não mude.

 

É cegueira total o autor não ter entendido a causa dos jagunços, confundindo um levante legítimo pela sobrevivência com a tentativa messiânica de desestabilizar a República.

Dizem que ele foi se humanizando ao longo da narrativa. Que os doutos me perdoem, mas o Euclides não foi se humanizando, ele simplesmente deu o braço a torcer depois que percebeu que os rebeldes estavam muito melhor estruturados na guerrilha do que os federais. Não eram pouca bosta. Ele reverenciou mais o aspecto bélico do inimigo (as táticas, a destreza, as tocaias, o timing certo das emboscadas, o manejo das armas, o uso perfeito de rastreadores e dos agentes duplos) do que propriamente o lado humano e social. Foi um raciocínio puramente militar & técnico, frio, uma coisa de gabinete, tipo: o adversário merece respeito.

 

Dizem também que a última coisa que o Euclides escreveu para Os Sertões foi o prefácio. Segundo alguns estudiosos, está ali está, em todas as letras, a denúncia (inédita para a época) do crime cometido pelo governo.

 

Mentira! É nesse mesmo prefácio que ele diz que a sub-raça nordestina estava fadada à extinção frente ao moderno processo civilizatório da República. Está lá, em todas as letras. Só faltou ele apoiar a teoria do embranquecimento do Brasil.

 

Além de figurar na Nota Preliminar, a expressão sub-raça nordestina aparece em inúmeros outros trechos do calhamaço, ao lado de mercenários inconscientes, sublevados, semibárbaros, sociedade morta, núcleo de agitados, rebeldia sertaneja insignificante, lastimáveis selvatiquezas e por aí afora.

 

Euclides empregou palavras, termos, adjetivos, vocábulos e expressões pinçadas a dedo para denegrir e estigmatizar o jagunço e quitar o crédito de suas intenções e façanhas. Usou a linguagem do dominador. Os Sertões é um livro chapa branca. Consciente ou inconscientemente, serviu ao poder.

 

Furio Lonza

Escritor e dramaturgo

Rio de Janeiro

 

Fotografia de Maureen Bisilliat

Acervo Instituto Moreira Salles

Rio de Janeiro

outubro 2020