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FUGINDO DO VÍRUS

 

 

 

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O texto logo abaixo foi publicado no dia 29 de janeiro na revista Matinal, de Porto Alegre, com o título “Relato: viagem pela China em meio ao coronavírus”.

Relendo o depoimento, me dou conta de quanto não tínhamos ideia do que estava por acontecer no mundo. E como teríamos? Nada nos preparou para prever a dimensão catastrófica da covid-19. Desde que ela surgiu, meu marido e eu estamos fugindo do vírus. Até aqui temos conseguido.

 

A notícia de seu surgimento nos pegou na China, voltando da Coreia do Norte. Fomos conhecer o país de Kim Jong-Un, um sonho meio esquisito que acalentávamos desde muito. Tínhamos ido à Coreia do Sul e à China, cinco anos antes, e na época não foi possível ir pra a Coreia do Norte, algo havia provocado o fechamento das fronteiras (acho que era uma gripe). Preparamos tudo então a partir de setembro de 2019 e a antecedência se justifica porque ir para a Coreia do Norte requer um visto especial, obtido somente junto a uma agência oficial, aceita pelo regime coreano. Fomos pela Young Pioneer, empresa sediada na China, com guias ingleses e australianos. O nosso era da Austrália e tinha ido várias vezes para a Coreia do Norte. Ou seja, tudo dentro de uma planejada segurança. Um artigo sobre esta viagem publiquei no jornal Zero Hora, com direito ao contexto político e aos detalhes de visitas como a do túmulo de Kim Il-sung e Kim Jong-Il, avô e pai do nobre presidente atual. Link: gauchazh

 

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Pensando em retrospecto, imagino que se o vírus, que já tinha aparecido em dezembro na China, tivesse se espalhado mais rapidamente, Pyongyang teria fechado a fronteira antes do dia 22 de janeiro (a cidade chinesa de Wuhan, o epicentro da doença, fechou no dia 23 de janeiro, um dia depois da Coreia) e não sairíamos mais dali tão cedo. Esta foi a solução do país para o vírus não entrar. Com as precárias condições hospitalares norte-coreanas, certamente o estrago seria grande se uma medida radical não fosse tomada.

 

As autoridades continuam divulgando que não houve casos por lá. Naturalmente, é preciso desconfiar do “zero casos” porque a mentira é algo que se cultua naquele regime (também), com a diferença de que não há imprensa, apenas órgãos oficiais, assim, as mentiras passam a ser “fatos”.

O relato abaixo inclui o ápice da preocupação, que foi meu marido ter sido contaminado por uma bactéria no interior da China, que o levou a uma necessária internação em um hospital (até hoje não sabemos qual exatamente a medicação que ele recebeu). O texto foi encerrado com a incerteza de como seria ter que voltar a Pequim do Japão, pois o voo da Air China nos obrigava a voltar para o ponto de chegada. Resumindo a novela, a agência japonesa situada no bairro Liberdade, em São Paulo, na qual compramos as passagens, foi diligente para conseguir que a companhia chinesa nos enviasse para o próximo destino, a Alemanha, em um voo direto da All Nippon Airways, a famosa ANA. Considerada uma das melhores companhias do mundo, acabou sendo um presente duplo, porque além de não precisar voltar para a China, voaríamos num padrão bem superior ao habitual, embora todo o tempo usando máscara.

 

O presente só não foi usufruído com tranquilidade, pois a estas alturas estávamos lá pelo dia 12 de fevereiro e o vírus já tinha chegado ao Japão. Toda ginástica que praticamos em metrôs e outros lugares de aglomeração, usando máscara e muito álcool gel, em um voo de mais de 10 horas poderia não ser suficiente para barrar o vírus. Mas foi. Na Alemanha, com o objetivo de acompanhar o Festival de Cinema de Berlim, tudo parecia normal, inclusive a delegação de mais de 100 chineses cancelou sua participação no evento deixando todos menos apreensivos. Ninguém de máscara em lugar algum, somente as notícias cada vez mais alarmantes de países próximos, como Itália e Espanha, sobre o grau de letalidade do corona.

 

Então, a ansiedade era para voltar ao Brasil o quanto antes e ficarmos livres da coisa. Voo de volta, máscara retirada somente para comer, banhos de álcool gel e surto a cada tossida de alguém. Chegada no Rio de Janeiro, depois Porto Alegre, nenhum sintoma de gripe e alívio total. Vida retomando à rotina, primeira semana de ano letivo e logo as aulas são... suspensas. O pesadelo recomeça, mas sigo confiante até este 06 de outubro de 2020.

 

Link para o relato na revista Matinal: matinal.news

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Relato:

VIAGEM PELA CHINA EM MEIO AO CORONAVÍRUS

 

Viajamos para conhecer novas culturas e termos experiências diferentes. Às vezes as experiências podem ser demasiadamente diferentes, como estar no meio de uma epidemia.

 

Meu marido e eu fomos para a Coreia do Norte no início do mês e para isto tivemos que ir pela China, não haveria outra forma de cruzar a fronteira. A semana na “República Democrática” de Kim Jong-Il deu tudo certo e aproveitamos a volta para conhecermos cidades chinesas que ainda não conhecíamos. Em Guilin, em 15 de janeiro, meu marido começou a ter febre, mas achamos que era início de uma simples gripe. As notícias sobre o coronavírus já circulavam, porém nada a preocupar, até porque eram meia dúzia de casos localizados distantes dali. Já em Zhangjiajie, cidade com montanhas espetaculares que inspiraram o cenário de Avatar, a febre já durava quatro dias e não havia sinal de sua origem. A solução foi ir a um hospital. Por sorte, perto do hotel havia um, tipo Hospital de Clínicas de Porto Alegre, universitário, super bem equipado e limpo como deve ser um hospital. A dificuldade foi o idioma. Cheguei a gravar vídeos da situação bizarra que era conversar com o médico usando o Google Translator, já que o doutor, cheio de diplomas na parede, não falava nada de inglês. Como falar inglês não é prova de competência, o jeito era confiar. Ele pediu os exames de sangue de praxe e embora a bactéria não tenha sido identificada, a infecção era alta e meu marido teve que receber uma espécie de infusão de antibióticos durante cinco horas. Ficou em um quarto privativo para este fim, recebendo a atenção de enfermeiras e estudantes de medicina, todas usando um aplicativo de tradução, pois o Google é proibido na China. Após a infusão, uma batelada de remédios para usar por 7 dias, todos da medicina tradicional chinesa, chás que não tínhamos ideia qual a função já que era impossível ler a bula. O jeito era confiar.

 

Durante todo o processo de consulta e internação, que custou cerca de 50 dólares, não se falou em coronavírus. Talvez porque ainda não havia o clima de epidemia que dias depois tomou conta do país (o episódio do hospital foi dia 19 de janeiro), talvez porque o médico, de posse dos exames, tivesse certeza que era apenas uma bactéria.

 

Para chegarmos na capital Beijing, pegamos um trem para Changsha, cidade a 650 quilômetros de epicentro do coronavirus, Wuhan, e de lá um avião para Beijing.

A febre ainda durou uns 3 dias, passando a tempo de entrarmos no Japão. Na saída, no aeroporto de Benjing, o cenário já era de multidões usando máscara (começava o maior deslocamento humano da terra, o Ano Novo chinês) e cada passageiro tendo a temperatura medida antes de embarcar. O controle rigoroso e a apreensão nas filas davam a dimensão de que o vírus era algo muito mais sério do que pensávamos.

 

Sair da China foi um alívio, só que o avião estava cheio de chineses! Um dos principais destinos dos turistas chineses é justamente o Japão. Máscaras e álcool gel não eliminaram os olhares em direção a cada tosse, a cada espirro em volta.

 

No Japão, que teve até agora dois casos comprovados, podemos observar dia a dia o aumento do número de pessoas usando máscara. É tradição no país usar máscara para evitar transmitir qualquer doença. Se a pessoa está gripada, ela usa máscara como respeito ao outro. Mas no clima da epidemia, o que se vê é a tentativa de se proteger de um vírus que de fato está geograficamente muito próximo. Nos canais de TV japoneses, mesmo sem entendermos a língua, vemos a profusão de reportagens sobre o tema.

 

As concentrações de gente em metrôs, shoppings e mesmo a céu aberto são impressionantes, portanto é natural todo tipo de prevenção, mesmo que máscaras e gel sejam considerados pouco eficazes.

Pessoalmente, a apreensão segue, pois o voo de volta tem conexão em Benjing.

 

O jeito é confiar.

Ed 9 IVONETE China - Cidade Proibida  Uns com máscara, outros não.png
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Ivonete Pinto

Presidente da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine),

professora de cinema na UFPel e

uma das editoras da revista de crítica de cinema Teorema.

 

 

Fotos

Ivonete Pinto

Porto Alegre

 

outubro 2020