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CARTA A UM JOVEM PRESO

 

Apresento aqui um artigo-carta publicado faz algum tempo. Mas com o acréscimo de minha profunda preocupação entre prisão e pandemia. Que os apenados não sejam desassistidos. A situação é dura e apenas os mais bem aquinhoados conseguem deixar a prisão. Ninguém admite, sobretudo os gestores, a utilização técnica de genocídio. Haverá conceito mais sutil e menos chocante? A realidade, senhores, é demasiado intensa. Herodes lavou as mãos. E a cidadania? Segue a antiga carta. O nome do prisioneiro é fictício, por motivos óbvios.

 

Caro Luís: suas palavras me emocionam pela força e ousadia. Como um grito no meio da noite. Carta luminosa, escrita com tinta azul, mais ordenada que a caligrafia de seu destinatário. Dividimos a mesma terra, o mesmo céu e a mesma lei. A infância que vivemos nos aproxima um do outro. Irmãos de um tempo sensível, aberto para um mundo indiviso.

 

Você me lembra um amigo que, dentro do cárcere, e no início do século, também me escreveu, leitor voraz. A essa altura terá deixado a prisão, assim como você vai cumprir a pena, antes dos trinta anos de idade. A biblioteca prisional é a descoberta de um novo continente, onde literatura e liberdade coincidem.

Concordo: a literatura abre todas as celas, que são muitas e sutis, quando não invisíveis, dentro das quais vivemos, todos, sem exceção, mais ou menos conscientes da liberdade que precisamos conquistar. Não diminuo, apesar disso, um milímetro de sua dor e inquietação. A sua história acusa a ausência do Estado e o caminho áspero e solitário que o levou ao cárcere. Somos todos culpados, em certo grau, embora o artigo e a pena recaiam sobre o indivíduo. E aqui também nos solidarizamos um com o outro.

 

Você me impressionou ao falar de Crime e castigo. Dostoievski continua vivo nas bibliotecas prisionais, requisitado desde o título, com uma visão aberta sobre as humanas vicissitudes. Volte ao ponto em que Raskólnikov abre o coração para Sônia. Com lágrimas nos olhos, ela promete acompanhá-lo até a prisão na Sibéria. Como a sua noiva, Luís, que não o abandonou, como reserva de esperança e antídoto contra o isolamento.

 

O cárcere é um índice de barbárie, com a lógica de uma privação excessiva, avalizada por um Estado ausente, no qual milhares de apenados aguardam, sem advogado, num interminável purgatório, o julgamento a que têm direito, como se fossem almas penadas e não cidadãos. Quem vai responder por uma espera infinita? Sou a favor do fim do cárcere, não somente através dos números sem rosto, das estatísticas, mas pelas visitas que faço aos nossos presídios. É preciso enfatizar as penas alternativas, recorrendo ao isolamento apenas em caso extremo.

 

O caminho passa pela mudança do sistema prisional num polo de educação integrada, com escolas e bibliotecas, construindo lá dentro o que não se fez aqui fora. Ler os livros para ler o mundo. Não se pode subestimar o papel da leitura e de sua força libertadora, a mesma que levará você, estou certo, a cursar a faculdade de Direito.

 

É preciso responder ao desafio de um Brasil mais fraterno.

Imagino como queima o desejo de retomar as rédeas de sua própria vida, assumindo-se como sujeito pleno. Como quem se liberta do passado e de cabeça erguida. Um colega de utopia, capaz de promover a justiça e o acesso aos mais elementares direitos do homem no sistema prisional.

 

Caro Luís: aqui começa uma vida nova.

Marco Lucchesi

Poeta, escritor e

Presidente da Academia Brasileira de Letras

 

Rio de Janeiro

agosto 2020

 

Foto Printerest