AUTORRETRATO
Sidney Amaral
(in memorium)
Quando pensamos em arte no Brasil do século XIX, lembramos dos corpos negros subalternizados, explorados e humilhados. No século XX o negro começa a ter um certo espaço, principalmente na obra de Candido Portinari.
Mas o elemento inovador na obra do artista Sidney Amaral (1973-2017) é a utilização o próprio corpo como território para provocar e nos fazer refletir questões estruturais na sociedade brasileira, como a violência sobre os corpos de homens negros e pobres. Nesses autorretratos, ele propõe um posicionamento de afirmação do negro brasileiro frente à história e a realidade de opressão em que sempre viveram.
A obra de Sidney transita entre documentos/monumentos que suscitam subjetividades e esforços para reverter o que está colocado como norma, regra.
A série que apresentamos aqui são em sua maioria a dos autorretratos. Mas não só. Conheçam mais e mais.
O ESTRANHO
Oswaldo de Camargo
Se o escuro me relevais
à baça pele que ofusca
vossa estimada clareza,
também vos deixo por nada
o enxurro de tantos medos
nas vossas mentes liriais.
Os vossos doces punhais
aceito-os com meu disfarce
e atrás do muro de um riso
escondo o meu pensamento...
Olhai! A noite que chega,
borrando o vão da janela
é bem conhecida minha...
Eu a carrego em baús
vazios de vossa herança,
e eu a livro, por vezes,
berrando de desespero,
e a minha mensagem viaja
no dorso do uivo do vento.
E vós dizeis, repousados,
se, a medo, vossas faianças
velais, arcados de tédio:
“São lamentos, só lamentos,
aprendizado do eito...”
Senhores, vós não sabeis quem sou,
ah, não sabeis quem eu sou!
Mirai-me o rosto de cobre
combusto de sóis e ardumes,
notai-me o passo, eis que aturo
a estreiteza da senda
que vosso mundo traçou.
Vinde, provai do meu pão!
Abancai-vos a esta mesa,
se conheceis quem eu sou!
Assentai-vos, meus senhores,
provai do meu pão de fel,
repasto useiro em família...
No vosso rosto percebo
enojo ao que vos oferto...
Mas o que é meu tributo
à vossa força e firmeza:
sal e fel e ausência bíblica
de uma “escada de Jacó”!
Senhores, vós não sabeis
quem eu sou
Não, não sabeis quem eu sou!
Mirai-me a face de cobre,
lavrada de sóis e ardumes,
olhai-me o rastro, eis que meço
a estreiteza da senda
que vosso mundo traçou.
Vinde provai do meu pão!
A noite sentada à mesa
é bem conhecida minha...
A angústia serve de ancila...
Eu vos convidei, senhores!
Provai, provai do meu pão!
Sidney Amaral
(in memorium)
Artista plástico
Poema
Oswaldo Camargo
Foto
João Liberato
São Paulo
nov 2020
Sobre o ativista Oswaldo de Camargo
Considerado um dos poetas, escritores e ativistas mais importantes do movimento negro brasileiro, Oswaldo de Camargo terá pela primeira vez parte de sua obra publicada por uma grande editora, a Companhia das Letras. De acordo com informações da Folha de S. Paulo, o ativista, que tem 84 anos, é militante desde 1955, quando tinha 19 anos.
“É enorme alento para outros autores envolvidos com a literatura negra, demais desconhecida. Conhecer e divulgar autores desse ‘coletivo negro literário’ vai trazer muitas surpresas”, disse Camargo, em entrevista à Folha, sobre a publicação na editora.
Ele é pai de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares no governo Bolsonaro, que causou polêmica ao chamar o movimento negro de “escória maldita” e sugeriu acabar com o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro.
“O movimento negro tem que, infelizmente para o país, seguir no rumo de fazer uma nova abolição, como iniciaram intentar a Frente Negra e a imprensa negra nos anos 1930”, disse o escritor.
Sobre as declarações e posicionamentos do filho Sérgio Camargo, Oswaldo declarou que eles nunca tiveram atritos e que o filho está usando a própria liberdade, da forma que acha melhor. Ele ainda contou que, com tudo isso, Sérgio o respeita e apenas há distância de ideias.
“Sérgio é meu segundo filho, fez jornalismo na PUC, trabalhou na rádio Eldorado, teve cargo de chefia na Agência Estado. Nunca tive atritos com ele. Apenas uma coisa: Sérgio está usando, a seu modo, e conforme o que ele acha a melhor escolha, a sua liberdade. Seu caminho não é o meu. Pai sempre será pai; filho, filho. Houve amigos que me deram solidariedade, vendo-me atingido pelo rumo do Sérgio”, afirmou.
“Com tudo isso, ele me respeita muito; indiquei leituras a ele. Apenas há a distância de ideias, um valor bastante fundo. Muito notado, no meu caso, por eu ser alguém que desde os 19 anos está embrenhado, sem interrupção, com a questão negra em São Paulo, erguendo e divulgando valores que têm norteado muitas gerações de afro-brasileiros”, disse.