CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA
"No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5 e 30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo”
Estava começando a carreira no Jornal dos Sports quando tentei usar o mote do clássico de Gabriel García Marquez para escrever a crônica de outro clássico: Flamengo e Vasco. O Flamengo era favorito, venceu e a estrela do time, acho que era o Sávio, fez gol. Escrevi o texto me considerando o grande intelectual do jornalismo esportivo. Nunca esquecerei quando Macedo, o editor-chefe, veio em minha direção, página datilografada – datilografada, juro! – em mãos: “Você que escreveu?” E eu, todo empertigado: “Sim!” Ele fez de minha crônica uma bola de papel, arremessou em minha direção e, na maior calma do mundo, ordenou: “Começa de novo. Agora, direito”.
Ainda assim, a vontade de parodiar o romance numa crônica permaneceu recalcada. Pelo menos agora ninguém vai poder atirar a bola de papel em mim, já que a revista é eletrônica.
A lembrança veio quando me peguei tentando imaginar o dia em que o Brasil morreu. E quais seriam as possibilidades de começo para estas novas Crônicas de Uma Morte Anunciada.
"No dia em que iam matá-lo, o Brasil levantou-se às 5 e 30 da manhã para votar no mito, que chegava no barco conduzido pelo bishop norte-americano”
Não. Neste ponto da história, o Brasil já tinha sido assassinado, seu corpo em estado de decomposição, até. Melhor voltar um pouco mais no tempo.
"No dia em que iam matá-lo, o Brasil levantou-se às 5 e 30 da manhã para esperar o barco em que o presidente com maior popularidade da história era levado a Curitiba, após um processo judicial fraudulento aprovado pelo STF”
Tardio, também. Já estávamos mortos faz tempo.
"No dia em que iam matá-lo, o Brasil levantou-se às 5 e 30 da manhã para esperar o barco em que uma infestação de ratos iria destituir uma presidente legalmente eleita”
Se continuar assim, serei chamado de petralha e me mandarão pra Cuba. Como se ficar aqui fosse melhor do que morar num país onde o total de novos casos de Covid-19 nos últimos 14 dias é menor do que o número de mortes pelo vírus por essas bandas em apenas um dia. Além do quê, vá lá, se é pra mudar de vez, prefiro que me mandem pra Berlim, Lisboa, Buenos Aires...
Talvez possa carregar mais tinta na ironia.
"No dia em que iam matá-lo, o Brasil levantou-se às 5 e 30 da manhã para esperar Caetano estacionar o carro numa rua do Leblon”
Melhor...
"No dia em que iam matá-lo, o Brasil estacionou no Leblon”
Quem sabe uma inversão crítica?
“Nem mesmo no dia em que iam matá-lo, o Brasil levantou-se”.
O grande problema de uma crônica assim é que são tantas, mas tantas mortes que a gente se confunde. Golpe de 64, Canudos, Guerra do Paraguai, Escravidão. Talvez seja melhor partir da pedra fundamental.
"No dia em que iam matá-lo, o Brasil levantou-se às 5 e 30 da manhã para esperar o barco em que chegava Cabral”
Bom seria se existisse um Macedo naquele ano de 1500. O editor-chefe que fizesse da carta de Pero Vaz Caminha uma bola de papel, arremessasse e dissesse: “Começa de novo. Agora direito”.
Rodrigo Salomão
Roteirista
Rio de Janeiro
outubro 2020