A CLOROQUINA,
O FETICHE DA MERCADORIA E O MUNDO PÓS-PANDEMIA
“Cloroquina, cloroquina. Cloroquina lá do SUS. Eu sei que tu me curas, em nome de Jesus”
Assim, parodiando “Florentina” de Tiririca, cantavam os manifestantes em frente ao Palácio do Planalto, num momento em que o Brasil já caminhava para se tornar o epicentro da pandemia de COVID-19.
Muito se tem debatido sobre o que mudará no mundo após a marcha da humanidade para a destruição da biosfera ser bruscamente desacelerada por um vírus minúsculo que descobriu que a melhor forma de assegurar a propagação ilimitada da sua espécie era migrar dos corpos dos morcegos e pangolins para os nossos.
Os otimistas imaginam que encarar a morte de milhões de semelhantes nos tornará mais conscientes da fragilidade humana e da necessidade de rever valores e prioridades em favor da vida e da solidariedade.
Outros anteveem o acirramento dos ódios e particularismos, num cenário de caos e de luta pela sobrevivência, sob estruturas de vigilância e repressão que penetrarão cada vez mais todas as esferas da vida, com o auxílio das tecnologias digitais.
A polarização política em torno do uso de um medicamento, especialmente nos Estados Unidos e no Brasil, países que atualmente registram o maior número diário de novos casos e óbitos, suscita reflexões sobre a magnitude dos desafios a serem enfrentados para se tentar extrair algo de positivo desta tragédia monumental.
Não é difícil entender a motivação política por trás da defesa do amplo uso de uma substância que os governantes dos dois países reconhecem não possuir resultados cientificamente comprovado no tratamento da COVID-19, enquanto minimizam seus riscos colaterais, estes sim comprovados. Qualquer instrumento que ajude a acelerar a retomada das atividades econômicas é considerado válido, e será difícil, juridicamente, comprovar se alguém sobreviveu ou morreu por ter usado ou deixado de usar a cloroquina ou qualquer outra droga. Restará a guerra de narrativas e o que dela fizerem os bots do Twitter.
Mas por que, afinal de contas, creem os manifestantes que o filho de Deus estaria disposto a curar a doença que aflige o planeta por meio de uma substância química já disponível para outros usos, ludibriando os tolos ou mal-intencionados cientistas que negam sua eficácia?
Dito de outra forma, de onde vem a força da ideia de que o consumo de um medicamento é a verdadeira solução para um problema complexo que deixou os maiores poderes globais de joelhos?
Em meados do século XIX, as críticas às promessas de que a industrialização e o livre-mercado gerariam prosperidade universal já vinham se avolumando em diversos países europeus. Um jovem socialista formado na sólida tradição filosófica alemã, Karl Marx, chamou a atenção para uma importante dimensão metafísica do processo de subordinação integral da sociedade à lógica do mercado.
O capitalismo, dizia Marx, baseia-se na apropriação do valor produzido pelo trabalho alheio. Mas se a circulação das mercadorias geradas nesse processo fosse percebida como expressão da desigualdade social, o sistema estaria permanentemente ameaçado. Isso, entretanto, dificilmente ocorre já que as mercadorias se revestem de fetiche, ou seja, os seres humanos lhes atribuem propriedades inerentes capazes de gerar a satisfação de necessidades materiais e imateriais.
Os socialistas e românticos que expressavam seu desencanto com o fetichismo do capitalismo nascente, entretanto, não tinham a mais pálida ideia do que viria a ser a sociedade de consumo em massa de bens duráveis que começou a se expandir pelo mundo após a Segunda Guerra Mundial.
Como comentou Eric Hobsbawm, à medida que proporcionou um padrão de conforto material sem precedentes a cerca de um bilhão de seres humanos nos países capitalistas centrais e em segmentos privilegiados do resto do mundo, o novo padrão de consumo passou a ser almejado e buscado pelos mais de seis bilhões inicialmente excluídos.
A partir do final do século XX, enquanto o Estado de Bem-Estar social, a outra face da humanização do capitalismo no pós-guerra, começava a ser solapado, a circulação de mercadorias pelo mundo alcançava volumes inéditos, alavancada pelo deslocamento da produção industrial para a Ásia.
Uma sociedade global em que o consumo de massas convive com a precarização do trabalho, dos direitos sociais, da democracia e do papel regulador do Estado, assume um caráter fortemente predatório. A degradação ambiental e o fomento da mentira, do ódio e da intolerância por meio de redes sociais são apenas duas das faces mais visíveis desse processo.
O consumo compulsivo de mercadorias nocivas à vida humana é outro, e nele o mecanismo fetichista identificado por Marx assume um caráter particularmente perverso.
Droga é uma palavra ambígua na língua portuguesa, como ocorre com alguns de seus correlatos em outros idiomas. No Brasil da era colonial, as “drogas do sertão” eram produtos naturais exóticos, como cacau, cravo, guaraná e baunilha, comercializados para consumo dos europeus de forma similar às especiarias do Oriente. Nos sentidos atuais, o termo se refere tanto àquilo que cura e trata quanto àquilo que vicia, até porque, com frequência, tratam-se das mesmas substâncias.
O uso de produtos das mais variadas origens para induzir alteração de estado de consciência é praticado pelas sociedades humanas há milênios. Mas a industrialização e a sociedade de consumo de massas os tornaram disponíveis em quantidades astronômicas, atravessando o planeta de ponta-a-ponta, sem serem submetidos a qualquer forma de regulação, seja pela escassez, por práticas rituais ou calendários religiosos. Não espanta que essas mudanças tenham gerado a dependência química como problema de saúde pública, como os gin alleys da Londres e as subsequentes guerras do ópio já indicavam no século XIX.
Diversos medicamentos produzidos e comercializados por grandes corporações vieram a ser posteriormente classificados como drogas ilegais. A alemã Merck, por exemplo, criou o Ecstasy em 1914 e fornecia a mescalina utilizada pelo teórico da cultura Walter Benjamin em suas experiências sensoriais no final da década de 1920. Alguns anos depois, a empresa norte-americana Grimault & Company vendia cigarros de maconha como tratamento para a asma. A cocaína fazia parte da fórmula original de um produto que viria a se tornar ícone supremo do consumo de massas, a Coca-Cola, criada por John Stith Pemberton em 1886.
Mas o caso mais emblemático de uma substância que percorreu o circuito droga-medicamento/tratamento-dependência em diversos sentidos e em diversa fases é o do já mencionado ópio. A primeira epidemia de dependência gerada pela expansão acelerada do seu consumo recreativo, tanto na China quanto no Ocidente, decorreu diretamente das aventuras imperialistas europeias no século XIX. Sua primeira versão sintética para uso analgésico, a poderosa morfina, surgiu no contexto da Primeira Guerra Mundial, tornando-se posteriormente fonte de riqueza e poder para fornecedores legais e ilegais, do mesmo modo que ocorreu posteriormente com sua versão aprimorada, a heroína.
Nos últimos anos, entretanto, foi o consumo dos opioides, poderosos compostos químicos criados e comercializados por grandes corporações farmacêuticas para simular os efeitos dos derivados de ópio, que desencadeou a maior crise de saúde pública associada ao consumo de drogas da história. Nos Estados Unidos, particularmente em áreas afetadas pelo processo de desindustrialização, essa epidemia de dependência química é a primeira a afetar predominantemente a população branca, causando, atualmente, cerca de 50 mil mortes por overdose a cada ano.
A crise dos opioides borra definitivamente os limites entre drogadição e hipocondria, entre a busca por alívio para os sofrimentos físicos e psíquicos diante do esvaziamento das perspectivas de vida dos deserdados do neoliberalismo e a compulsão pelo consumo de remédio como simulacro de cuidado com a saúde.
E assim retornamos à cloroquina.
Defender mudanças de comportamentos individuais e coletivos como únicas alternativas racionais para reduzir os danos de uma tragédia anunciada nos coloca em choque com os impulsos básicos nutridos pela sociedade de consumo em cada indivíduo.
Como assim, que não existe um produto que eu possa comprar com meu dinheiro para resolver esse problema? E quem são vocês para dizer o que eu posso ou não fazer?
Nessa perspectiva, o combate ao isolamento social não se faz apenas em defesa da sobrevivência econômica, mas também em nome da liberdade, esse glorioso princípio da filosofia política que nós recentemente aprendemos que anda junto com as hemorroidas.
Será possível superar o fetiche do consumo e extrair da pandemia lições para reorientar nossas sociedades em direção à sustentabilidade, à superação das desigualdades e à construção de sentidos mais ricos para a vida humana?
Essa é, talvez, a grande batalha que se trava no mundo hoje, sob a sombra do combate à COVID-19.
Alexandre Fortes
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
Ilustração Robert Crumb
maio 2020