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BRANCO SAI, PRETO FICA

 

 

 

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Em 1968, as autoridades federais militares de Brasília, começaram um movimento para remover uma favela que se formara próxima demais do Plano Piloto. Habitada principalmente por trabalhadores que haviam construído a cidade, a vista da favela incomodava os deputados, os senadores e todos os excelentíssimos e meritíssimos que, chegando de avião à Brasília, tinham a “desagradável” visão de barracos de madeira, dos telhados feitos de plástico, das ruas onde o esgoto corria livre. Aquele ajuntamento não formava uma Super Quadra Norte ou Sul, não cabia na matemática, nem na geografia da cidade, contrariava a lei da física da exclusão: dois corpos não ocupam um mesmo lugar no espaço se um dos corpos for rico.

 

Os moradores da favela foram levados, sem escolha, para um lugar distante 30 km de Brasília e sem a infra-estrutura prometida, simplesmente despejados lá num processo que foi propagandeado pelo milicos como Campanha de Erradicação das Invasões, sigla CEI, originando o nome da cidade de Ceilândia. Esse ato fundador, marcado pelo exclusão até no nome, foi a pedra fundamental do cinema de Adirley Queirós, e que faz, a ele e aos moradores da periferia recriarem, pelo lado de dentro, os acontecimentos transformados em cinema.

Seu filme, "Branco Sai, Preto Fica", narra um episódio acontecido em 1986 na Ceilândia (DF), durante a realização de um Baile Black, no Clube Quarentão. No auge da diversão da molecada, a polícia entrou no salão, mandou parar a música e gritou para a multidão que delirava com as coreografia dos grupos blacks: branco sai, preto fica! Seguiu-se uma confusão generalizada, com carga de cavalaria pra cima dos frequentadores e tiros que acertaram dois jovens negros deixando um paraplégico e outro sem uma perna.

 

Esse foi um acontecimento real, mas também lendário: todos os moradores da Ceilândia juram que estiveram presentes no local, não estavam todos, claro, mas de certa forma estavam, porque o ato de brutalidade policial marcou profundamente a comunidade local.  Todos, na imaginação e na realidade, sem distinguir uma da outra, se encontraram e se identificaram nesse trauma coletivo, tomando a história para si e fundindo-a na memória com o outro evento traumático que foi a fundação da cidade.

 

Paralelo a história dos dois personagens, Shockito e Marquim, atingidos pelos tiros no baile, "Branco Sai, Preto Fica", narra a saga de um viajante do espaço, o inesquecível Cravalanças, chegando a Brasília com a missão de denunciar o Estado brasileiro por crimes praticados contra a população periférica. Cravalanças  desembarca no Distrito Federal numa nave que parece um conteiner. No trajeto ele perde sua carteira de identidade, cartão de crédito e dinheiro; está em más condições de saúde e cheio de contas pra pagar em seu planeta natal. Tudo acontece num futuro próximo, 2073, em que os habitantes de Ceilândia precisam de passaporte pra entrar na capital do Brasil. No lugar de ficar flutuando no espaço como o Major Tom, personagem de David Bowie em Space Oddity, ou um Dr. Smith de Perdidos no Espaço, o navegante do Cosmo fica perdido no planeta terra mesmo, sem conseguir cumprir sua missão, sem conseguir voltar. “Branco Sai, Preto Fica” e o cinema de Adirley não se definem como documentário, nem como ficção, muito menos como reconstituição da realidade, simplesmente não se definem, misturam linguagens e gêneros dramáticos, não colocando nenhuma delas em categoria superior a outra.


O que eu faço é etnografia da ficção, é uma ideia que ilumina o que penso. No início da produção proponho personagens fictícias pra todo mundo, mas a forma de filmar é etnográfica sempre, porque primeiro as pessoas se adaptam ao cenário, às vezes isso leva um ano pra acontecer. Quando os atores se adaptam a gente traz a equipe que também representa, por exemplo: eu falo pro fotógrafo que ele veio de um planeta tal e está interessado por alguma notícia aqui da terra. Todos da equipe viram personagens, jogamos um jogo que é meio alucinado e entramos numa imersão que é quase um transe durante algum tempo. Pra mim essa etnografia da ficção dos meus filmes é uma abordagem que cria uma empatia com as pessoas, cria muito mais a possibilidade real de um dicussão política. Essa realidade inventada é a etnografia da nossa imersão. Não tem essa maneira de filmar do cinema clássico, com roteiro certinho, ordem do dia... A equipe é de cinco pessoas, sempre cabe num carro. E o modelo de produção influencia radicalmente, porque você não tem controle total da situação. O que dizem do nosso trabalho, que é desorganização e inconsistência dramatúrgica é, na verdade, a grande consistência da materialidade do objeto cinema.


“Branco Sai, Preto Fica” foi um tremendo sucesso no Festival de Brasília de 2014, ganhando 11 prêmios, entre eles, melhor filme, melhor direção, melhor ator, e foi premiado em mais de 30 festivais pelo mundo. Todos os atores e a maioria da equipe mora na Ceilândia. 

 

O filme inicialmente era pra ser um documentário clássico, pra contar aquele evento do baile no Quarentão, mas já propondo colocar personagens ficctícios, que tinham uma outra relação de montagem do tempo, numa memória cheia de lapsos por causa da epilepsia, baseado no personagem Smierdiakóv, irmão bastardo do romance Irmãos Karamazov, de Dostoiévski. Quando ganhamos o edital eu chamei o Marquim do Tropa, que é meu amigo aqui da Ceilândia, e que de fato sofreu um acidente que deixou ele paraplégico, mas não como ele conta no filme. Tudo no filme é uma invenção baseada na história dos tiros da polícia, mas o que me interessava era como o Marquim contava a história, como ele se envolve, e foi aí que ele falou uma coisa que mudou completamente a narrativa: "eu acho massa isso tudo, mas não quero mais falar da minha vida, já perdi, pô, eu tô nessa cadeira de roda e não saio mais dessa cadeira, vocês não fazem cinema? Eu quero voar, quero dar uns tiros, quero ser o super-herói, não mais o bandido da história". O que disse o Marquim mudou radicalmente a história. Pra mim isso significa: pra que diabos a gente faz esse documentário contando algo supostamente real? Que a gente reafirma que a gente se fodeu, todo mundo sabe disso, todo mundo sabe a história da periferia... O filme acabou levando dois anos e meio pra ficar pronto nesse processo todo da criação da arte, da fotografia cuidadosa... Nesse tempo fomos transformando o filme, que não tinha um linha de roteiro sequer. O cenário do personagem Marquim era uma padaria abandonada, tiramos todo o equipamento de lá e limpamos, mas sobrou uma coluna com uma válvula de gás que não podia ser retirada porque fazia parte da estrutura. Aquilo estava o tempo todo atrapalhando. Aí a gente falou: vamos transformar numa bomba essa porra. A princípio não tinha bomba no filme.

 

A mistura de vivência na Ceilândia, as histórias da vida dos personagens e suas fabulações, e a criação em processo constante de encontros vão se ramificando até a concepção final das obras, quebrando qualquer hierarquia ou preponderância, formando uma só camada, da linguagem à maneira de produzir e dirigir. Tal amálgama é também a história de Adirley Queirós que aos 12 anos começou a sua vida como jogador de futebol profissional de times pequenos da segunda e terceira divisão, do Distrito Federal e de Goiás.

 

Eu era cabeça de área, jogava do meio pra trás, não era craque, batia muito, jogava tipo o Dunga. A vantagem é que eu era falastrão, ganhava no gogó, na liderança mesmo. Um dos meus treinadores foi o César Maluco, goleador do Palmeiras nos final dos anos 60, eu dirigo filmes como o César Maluco falava pra gente no vestiário. Ele é um poeta, mistura taoismo com umbanda, faz leitura do Tao pra saber como será o jogo, é o maior fabulador que conheci.

 

Depois dessa passagem pelo futebol profissional e de dar aulas particulares de matemática, física e química, Adirley resolveu fazer um concurso para trabalhar como maqueiro de hospital. Como o lugar da inscrição era junto à Faculdade de Comunicação da UNB, chegando lá ele ficou encantado com a quantidade de moças lindas reunidas na hora do recreio.


Eu fui jogador de futebol então a gente tinha uma fantasia com as jornalistas que cobriam os jogos, falando isso hoje pode parecer misogenia, mas na época eu decidi que era aquilo que eu tinha que fazer e me inscrevi no vestibular pro curso de comunicação, impulsionado pelo feitiche da jornalista. Passei.


Dentro do jornalismo ele optou pela graduação em cinema e a primeira vez que assistiu um filme de estilo não hollywoodiano, foi dentro da sala de aula: "A Greve", de Sergei Eiseinstein. Terminada a projeção o professor perguntou o que ele tinha achado do filme.


Falei: cara, eu não achei nada. Não entendi foi porra nenhuma. E nem sei se eu volto aqui amanhã. Eu não tinha nenhuma relação com o cinema, não tinha cinefilia, não tinha relação parental nem amizades com o pessoal da área. Tudo o que faço em cinema eu aprendi na universidade pública e gratuita. Rapidamente eu comecei a gostar da teoria do cinema, da montagem, da especulação da linguagem. E aí veio o meu primeiro curta, depois o longa "A Cidade é Uma Só?" e depois "Branco Sai Preto Fica", "Era Uma Vez Brasília"...

 

Essa é uma das versões da história de Adirley Queirós e suas obras. Há outras, talvez mais críveis. Por exemplo, dizem que em 1968, o Estado Brasileiro, seu governo militar e a Campanha de Erradicação das Invasões, foram denunciados ao Comitê Intergalático dos Direitos do Homem do Universo. Na mesma hora enviaram um esquadrão de viajantes interplanetários, em suas naves espaciais, para resgatar o povo da favela próxima do Plano Piloto e impedi-los de serem removidos para a Ceilândia. Mas os viajantes cósmicos tiveram muitos problemas na viagem, apesar de viajarem na velocidade da luz, tal eletricidade era fornecida pela Light e não funcionou. No Cosmo também há exclusão e discriminação: mandaram para cá um bando de agentes precarizados, com salários aviltados, tendo que dirigir naves espaciais por milhares de anos, sem descanso, pra conseguir uma merreca no final do mês e sustentar a família. E, é fato comprovado, existem seres espaciais que tem três bocas, então famílias com quatro filhos tem doze bocas pra sustentar. A missão acabou num fracasso, alguns desapareceram no infinito, outros voltaram para seus planetas e um único chegou até Brasília, mas pousou no lugar errado e com enorme atraso: Ceilândia, 1970. A merda já estava feita. Sem outra opção, o viajante intergalático acabou ficando em Ceilândia e logo se encantou com um jogo conhecido pelos terráqueos como football. O football o levou ao cinema que o levou a teoria do cinema, à filosofia, à física quântica, à literatura, e como o universo gira, voltou ao cinema outra vez, num percurso onde várias realidades e fantasias acontecem ao mesmo tempo. E sobretudo, sempre, como diz Chico Science: "Ceilândia embaixo dos pés e a minha mente na imensidão". A imensidão do Universo, que reverenciado nas obras como inspirador de mudanças e porto inseguro da imaginação, conspirou pra a realização de uma obra-prima do cinema nacional.


 

 

"Branco Sai, Preto Fica" pode ser visto na Netflix. 

 

* Na próxima edição, continua a entrevista com Adirley falando sobre seu filme mais recente: "Era Uma Vez Brasília", e seus novos projetos. 

 

Texto

Gil Rodrigues

Roteirista, jornalista e editor da revista Ignorância times

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Rio de Janeiro

março 2021