O QUE HÁ DE MODERNO NAS NOSSAS AVÓS NEGRAS?
A Semana de Arte Moderna ocorrida em São Paulo em 1922, foi um movimento que assinalou a importância da sociedade em enxergar o seu povo. Destacar as particularidades das experiências do povo brasileiro foi uma das propostas que envolveu a vanguarda artística daquele contexto. Porém, o olhar de uma elite artística, predominantemente masculina e branca, não deu conta de enxergar o protagonismo desse povo brasileiro e as particularidades de suas agências na construção cultural que engloba diferentes formas artísticas e engenharias de (r)existências.
No ano do centenário daquela Semana de Arte Moderna, a Feira Literária das Periferias do Rio de Janeiro (FLUPRJ) propôs uma “outra” Semana de 22, refletindo sobre o que seria o modernismo e propondo uma perspectiva de modernismo negro, com exposições sobre modernismo em Lima Barreto e Pixinguinha, shows, intervenções artísticas, oficinas e mesas de debates sobre perseguições religiosas, ancestralidades, Pequena África (região política e social do Rio de Janeiro), afrofunk, jazz e tantas outras preciosidades da cultura que se construiu nas periferias do que a elite considerou como arte.
Participei de uma das mesas junto com Flávia Oliveira e Eliana Alves Cruz, sobre as Tias Baianas e o modernismo. As Tias baianas entraram na história cultural urbana da região central do Rio de Janeiro por serem mulheres negras trabalhadoras que ocupavam o espaço das ruas, vendendo comidas. A indumentária e o contexto de migrações de baianos para a capital consagraram a ideia de que eram todas baianas. Embora a ocupação dos espaços das ruas com esse tipo de trabalho e muitos outros, tenha sido tradição de muitas mulheres escravizadas, ex escravizadas e livres nas urbes brasileiras.
As mulheres negras sempre ocuparam as ruas com seu trabalho. Assim foram e ainda são potentes articuladoras sociais, em projetos coletivos, familiares ou individuais. Foram essas mulheres que abriram as portas de suas casas para receber parentes e amigos e assim construíram redes de ajuda mútua, lazeres, festas regadas a saberes afro diaspóricos, (re) existindo em forma do direito à diversão - a alegria. Na casa das Tias, entre macarronadas, cozidos e feijoada o samba carioca e outros ritmos foram sendo forjados. Eram espaços onde funcionavam terreiros, ranchos carnavalescos, blocos e escolas de samba.
Refletindo sobre as Tias baianas, lembrei de minha avó..., uma das muitas mulheres baianas que migraram do Recôncavo da Bahia para o Rio de Janeiro no fluxo da década de 1940. Jovem, com 6 filhos, veio sozinha, deixando sua cria dividida na casa de seus parentes. Dessa época ela falou pouco, mas daquele pouco que diz muito. Era uma pessoa prática e de poucas demonstrações afetivas, até bastante dura em palavras e atitudes. Trabalhou a vida toda como empregada doméstica e quando perguntávamos por que ela tinha saído de perto de sua família para viver no Rio de Janeiro, dizia: “Por causa da miséria”.
Nos poucos momentos que se lançava às memórias de sua vida na Bahia, dizia que sua avó materna teria sido uma índia pega no laço. A princípio sua fala aparentemente buscava certa aproximação de uma identidade indígena que não estava necessariamente ligada às nossas visíveis características físicas descendentes de africanos, um fenótipo que hoje entendo como afro-indígena. Conforme fui crescendo e tendo acesso a escolarização, percebi que sua fala remetia a duras realidades de violências e exploração, no entanto, de projetos de uma vida melhor. Para além da romantização da força da mulher negra, indígena ou afro-indígena temos histórias de resistências que foram forjadas pela dor.
A reflexão entre as Tia baianas e minha avó, me remeteu às vivências de mulheres negras como potentes construtoras do moderno. Movimentos modernistas de maneira geral podem ser compreendidos dentro de contextos de transformações, econômicas, políticas e sociais. Pensar na população negra produzindo movimentos culturais modernos não pode estar descolado da perspectiva que entende as instabilidades provocadas por tais conjunturas em grupos atravessados pelas inconstâncias sociais.
Foi nesse diapasão que a Semana de 22 proposta pela FLUPRJ me fez considerar os modernismos em nossas avós negras. Nos lugares de memórias de saberes afrodiaspóricos que essas mulheres construíram em meio aos seus projetos de vida. É muito mais sobre considerar as engenharias cotidianas que projetaram para si e para seus o direito de sonhar serem mais do que tristes estimativas de violências e miséria. Construindo espaços culturais, sociais, de (r) existências, modernismo negro ou simplesmente sendo.
Alessandra Tavares
mulher negra, favelada
pintura GRANDMA'S HERE / DEBORAH SHEDRICK - printerest
Rio de Janeiro
abril 2022