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"QUEM ME ELEGEU ELENCO DE APOIO?"

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Vejo a internet como mundo mágico. Daqueles que oferecem vivências maravilhosas, com acessos a informações, diversões e aproximações entre mundos e pessoas, mas como todo mundo mágico, há situações perigosas físicas e emocionais. Não sou uma pessoa ativa nas redes sociais, mas gosto de observar e interagir muito brevemente em algumas ocasiões. Sigo desde páginas sobre política e questões de raça, racismo e gênero a páginas de macramê, tatuagem em peles negras e, gosto muito, de fofocas de celebridades. Confesso que nem sempre ou quase nunca, sei quem são as pessoas envolvidas nas fofocas. Acompanho com curiosidade em entender como pessoas muito distante da minha realidade lidam com questões do seu tempo e o meio em que vivem.

 

Num desses momentos de observação despretensiosa me deparei com uma situação gatilho. Daquelas que abrem portais para mundos que você nem sabia que estavam ali. Foi em uma das páginas de fofocas que percebi que as celebridades que acreditava possuírem vivências muito distantes das minhas, não estão isentas de questões que me atingem a vida toda. Um famoso jogador de futebol, que ao longo de sua vida pública se posicionou como não negro, mas que recentemente vinha tendo leves lampejos de consciência racial, teve uma ampla cobertura “fofocalística” sobre sua recente mudança de cabelo. Ele havia colocado tranças ao estilo da cultura afro-americana, conhecidas aqui no Brasil como Box Braids. O que me levou ao mundo emocional de gatilhos foi a rapidez com que ele retirou o novo penteado.

 

Não posso dizer quais questões o levaram a retirar suas tranças, mas me chamou a atenção a quantidade de piadas e memes que foram gerados, ridicularizando a sua escolha de penteado. A constante comparação com esfregões ou personagens de desenho animado inspirados em pessoas em situação de rua, remetendo a coisas sujas, me fizeram pensar nos alcances do racismo na internet. São imagens que reforçam a ideia de incapacidade intelectual, estética e afetiva para as pessoas negras. Em memes que colocam uma pessoa negra e uma pessoa branca como exemplos de polos diferentes, onde a pessoa negra representa a incapacidade e a branca o sucesso idealizado. São ideais de superioridade e, por conseguinte, de inferioridade, difundidos através do humor no que Adilson Moreira chamou de “Racismo Recreativo” (MOREIRA, Adilson, 2019).

 

Em uma breve pesquisa, vi algumas páginas problematizando questões que havia identificado, mas a profundidade e recorrência de alguns temas me saltaram aos olhos. São memes que abordam lugares, ou os não lugares, do ser negro na sociedade. Só para dar alguns exemplos, - que me recuso a ilustrar com imagens -, temos o da mulher negra com uma criança no colo com a legenda: “Pedro, assuma seu filho!” ou aquelas “Eu (a imagem de uma pessoa negra) X O varão que peço a Deus (a imagem de alguma celebridade branca)” ou o Eu (imagem de um homem negro) X O tipo de mina que eu chamo para trocar ideia sendo que vou levar vácuo (imagem de uma mulher branca). Outra da ordem das imagens em contraposição que muito me afetou, foi a do vírus da covid e uma mulher negra, com as seguintes legendas “Imagem da Covid (se pegar morre) X imagem da mulher negra (se pegar se apaixona), o comentário construído junto a imagem dizia “Às vezes é melhor morrer”. Para além da desqualificação da estética negra, fica nítida nessa breve pesquisa a profundidade de questões sociais que envolvem a estética e o direito a afetividade das pessoas negras. São questões como a da mulher negra e seu filho que não são assumidos como família, a da construção de um ideal de afetividade pautado na estética branca e que não pode ser alcançado por pessoas negras, ou seja, a afetividade das pessoas negras ou para pessoas negras não têm lugar diante da reprodução do Racismo Recreativo.

 

Eu, como uma pessoa anterior a popularização da internet, fiquei pensando sobre como os alcances da construção dessas imagens podem até ser novidade, no entanto, antes mesmo da proliferação das ferramentas visuais o Racismo Recreativo fez parte das minhas experiências de ser uma pessoa negra.

 

Memórias da minha infância saltaram aos olhos como imagens vivas de momentos em que tive que engolir o choro da humilhação ao ouvir piadas depreciativas sobre minha cor, meus cabelos, lábios e cheiro, sempre remetidas a sujeira, comparações com macacos e a constante associação a falta de inteligência e a tendência à criminalidade. Foram lugares de dor não nominadas, mesmo porque não tive naquela época qualquer suporte ou debate sobre questões raciais. O sentimento de não lugar foi sendo construído em nome do entretenimento. Foram dores não nominadas e não permitidas, porque eram sentimentos que não tinham lugar, diante da “brincadeira”. O Racismo Recreativo promove esse não lugar de dores, construído em nome da difusão de ideais racistas. Quem se ofende ou problematiza a questão é visto como quem estraga a diversão alheia, em uma espécie de inversão da culpa. Nesse caminho o silêncio se constrói em dor, baixa autoestima e auto ódio em pessoas negras.

 

Tenho memórias nítidas sobre as subjetividades do racismo em questões afetivas. Na minha adolescência fazia parte de um grupo com predominância de jovens brancos. Em dado momento os colegas identificaram como um garoto e eu tínhamos um humor semelhante e começaram a incentivar uma maior aproximação entre nós, por sinal éramos os dois negros do grupo. Já naquela época duas coisas me chamaram atenção, a primeira era que embora ele fosse um jovem negro ele só se aproximasse das garotas brancas, talvez Fanon explique essa questão (FANON, Frantz, 2008).

 

A segunda é que me senti o que chamo hoje de “negro de estimação de gente branca”, aquelas pessoas que são tratadas com “elenco de apoio” às vidas das pessoas brancas do grupo. Já que todos estavam seguindo com suas experimentações afetivas porque não incentivar o “elenco de apoio” a isso também, mas quem podia ser uma possibilidade real para essas pessoas senão alguém do elenco de apoio? A imagem é forte, mas é muito real e reforça a ideia da construção dos limites para as afetividades das pessoas negras. Era como se o roteiro da minha história só fosse possível a partir das escolhas dos “protagonistas”. Como “elenco de apoio” eu não era dotada de história e escolhas individuais. - Mas quem me “elegeu elenco” de apoio?

 

Depois de mais de 30 anos dessas vivências o grupo se encontrou nas redes sociais e marcou um encontro presencial. Qual não foi minha surpresa que a maioria dos garotos, hoje homens feitos, não lembram da minha existência no grupo. Lembrei como sempre fui ativa em ambientes coletivos e como não fui considerada uma opção afetiva. Eu era a pessoa que fazia a ponte entre eles e as garotas do grupo, ou seja, aquela que embora estivesse em cena não possuía individualidade para ser considerada afetivamente. Esse fato alçou memórias desse sentimento de não lugar que era uma constante em meu tempo de adolescência e que hoje consigo problematizar, mas não deixar de sentir a força da exclusão.

 

Embora o jogador de futebol famoso tenha uma vida muito diferente da minha, somos atravessados pelo racismo. Retirar as tranças pode ter sido uma escolha individual, mas que afeta simbólica e coletivamente às pessoas negras, uma vez que foi seguido de silêncio sobre a questão. Isso tem a ver com a importância de “tornar-se negro” no sentido de se entender e possuir instrumental para nomear e se posicionar a respeito do racismo (SOUZA, Neuza Santos, 1983). A subjetividade do racismo e, sobretudo do Racismo

 

Recreativo, é como disse Kabengele Munanga “um crime perfeito”, reforçando exclusões, baixa autoestima, auto ódio e a imensa solidão afetiva, sobretudo, para as mulheres negras.

 

Alessandra Tavares

Professora negra e Doutora em História

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agosto 2021