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SACRIFICAR TUDO:

O DUPLO SENTIDO DO RACISMO NA VIDA DAS PESSOAS NEGRAS

 

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Em mais um feriado chuvoso fui despretensiosamente dar uma olhada na série “Colin em Preto e Branco”. Como não havia lido nenhuma resenha a respeito, fui absolutamente sem expectativas, acabei grudada, maratonando os seis episódios sobre a adolescência de Colin Kaepernick, jogador de futebol americano que atuou no San Francisco 49ers.

 

 

A série fala sobre alguns episódios das experiências em ser um jovem esportista negro no ambiente escolar e os desafios para conseguir alcançar seus objetivos como jogador. Embora tivesse propostas de bolsa de estudos em muitas universidades para jogar outros esportes, o sonho de Colin era o de ocupar a posição de quaterback no futebol americano. Suas primeiras percepções sobre o racismo são contrastadas com debates promovidos por um Kaepernick adulto, que nomeia questões as quais o jovem Colin ainda não possuía instrumental para formular - embora as sentisse. São diferentes formas de violências racistas, umas mais diretas e explícitas, outras como micro violências implícitas presentes em seu cotidiano, que o fez tomar consciência de ser negro.

A série traz esse gostinho amargo da compreensão sobre os caminhos que o levaram a se posicionar contra o racismo nos EUA. Como aqueles olhares de compreensão trocados entre pessoas negras em determinados ambientes. Colin adulto foi o jogador que liderou o gesto de se ajoelhar durante o hino nacional estadunidense em protesto à violência do Estado contra pessoas negras. Ele sofreu inúmeros ataques racistas por manter seu posicionamento, não recuou e isso lhe custou o emprego, que lutara muito para conseguir em sua juventude.

 

O título da série foi inspirado na propaganda feita por uma grande empresa de artigos esportivos em comemoração aos 30 anos do slogan da marca. Foi utilizada a imagem de Kaepernick em preto e branco com a seguinte frase: "Acredite em algo. Mesmo que isso signifique sacrificar tudo". A campanha da marca de artigos esportivos foi seguida pelo grande movimento de repúdio à empresa, por ter Colin Kaepernick como “garoto propaganda”. Houve o significativo aumento das vendas de camisas esportivas com o nome Kaepernick, para serem queimadas e divulgadas em vídeos que foram viralizando, em um movimento com direito a “hashtags”. O que chama nossa atenção sobre o real engajamento das empresas na luta antirracista - mas isso é assunto para outra pauta.

 

A marca justificou a escolha por Kaepernick, por ele ser "um dos atletas mais inspiradores desta geração" - concordo! No entanto, chamo atenção aos preços pagos por quem se posiciona. Não estou dizendo que a luta não é necessária. Acredito que se posicionar é transformar o presente e sonhar com um futuro melhor. A luta antirracista é fundamental, mas também é árida. É o duplo sentido do racismo, silenciar diante da dor, não é uma opção e, denunciar, se posicionar é um movimento de fincar os pés no chão e se tonar alvo de mais violências. Como podemos assinalar no caso de Kaepernick que ainda hoje continua sem emprego e de tantos ativistas negros que foram assassinados, no Brasil e no mundo, por se posicionarem em favor da luta antirracista.

 

Acreditar em algo que na verdade é um meio de salvar sua vida e de seus iguais não deveria “significar sacrificar tudo”. O silêncio a respeito das questões raciais é uma sentença e o posicionar-se apresenta seus butins. O duplo sentido do racismo na vida das pessoas negras não pode ser negligenciado ou naturalizado como parte da luta, mas como outra face do racismo. O “sacrificar tudo” é um sentido muito amplo, que pode abarcar desde questões profundas que levam à comunidade negra a diferentes formas de exclusões, ao imenso sentimento de inadequação e ao genocídio do seu povo. Simplesmente por defender o “ser e estar negro” em uma sociedade que naturaliza e universaliza a branquitude.

 

Toni Morrison, primeira mulher negra a ganhar um prêmio Nobel de literatura, grande intelectual com imensa obra que reflete sobre as experiências negras e o racismo no Estados Unidos, tem uma fala que muito me impressiona que diz assim: “A fundação do racismo é a distração. Isso impede você de fazer seu trabalho. Isso mantém você explicando, repetidamente, sua razão de ser.” O racismo é uma “distração” que nos mata física, emocional e simbolicamente, nos impedindo de sermos em nossas potências.

 

Estamos roucos de falar, cansados de lutar, de resistir, mas continuamos a “sacrificar tudo” para que possamos mais do que sobreviver, existir e viver sendo negros. Em um sonho de que um dia possamos empregar nossa energia em fazer “o trabalho”, em sermos potência, sem desviarmos do caminho para “provar” à branquitude - que está cansada de saber, mas não quer perder seus privilégios - que temos total direito de “ser e estar negro”, onde e como quisermos. Sem termos que “sacrificar tudo” para existir.

 

Alessandra Tavares

Professora negra, doutora em história

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Foto Colin Kaepernick

Printerest

 

Rio de Janeiro

nov.2021