UM SONHO AFEGÃO
Domingo é um dia família total, dia de macarronada, futebol na TV e fim!
Pode-se dizer que o final de tarde de domingo é inércico, o anoitecer nos arrasta pra segunda feira...
Só que não!
Meu Whatsapp começa a vibrar desesperadamente, insistente e irredutível!
Preciso ver o que está acontecendo... dez mensagens... caramba deve ser grave...
Hassan.
Hassan?!
O que o Hassan quer comigo as seis da tarde do domingo?
Dono do bar e centro cultural Al Janiah, ativista de esquerda e famoso por apoiar refugiados do mundo inteiro. Um idealista daqueles que acredita na igualdade social e nos direitos dos seres humanos a uma vida mais digna.
“Alex me liga urgente!”
Há menos de um mês finalizei minha exposição, lá no Al Janiah, sobre os refugiados afegãos. O interesse foi tal que tive que prorrogar por dois meses. Ficamos amigos e entre esfihas e araks fomos tecendo a nossa amizade.
“Alex, urgente. Quando puder, me liga. Tem um afegão que chegou direto do aeroporto pra cá!”
Imaginem meu choque? Como assim?! Que história é essa?!
Liguei imediatamente pra ele.
Fala Hassan?! Que maluquice é essa?!
“Cara, você não vai acreditar, me ligaram do bar, o pessoal da limpeza.
Tem um cara aqui que apareceu do nada e ninguém entende o que ele fala, não é árabe e parece que fala inglês. Vem pra cá porque tá esquisito.”
Corri pro bar para ver o que estava acontecendo.
“Alex, o afegão chegou em Guarulhos e precisou trocar alguns dólares que trouxe, abordou uma mulher e começaram a conversar em inglês.
Bicho, a mulher colocou ele num taxi e mandou entregar aqui no bar, absurdo! Que sorte ele teve!”
Enfim, após vinte quatro horas de voo, Shafiq Latifi, 25, afegão, nascido em Jalalabad, professor e intérprete estava são e salvo em solo brasileiro.
A jornada de Shafiq começou alguns dias antes da entrada do Taleban em Cabul.
No começo da noite de 15 de agosto de 2021, Shafiq recebeu uma mensagem de um soldado americano, pra quem trabalhava, dizendo que ele deveria correr para o aeroporto, pois o Taleban tinha uma lista em mãos com os nomes dos cidadãos afegãos que colaboraram com os americanos e que seu nome estava lá e os Talebans estavam a poucos quilômetros de Cabul.
Nas primeiras horas do dia seguinte, Shafiq e outros três intérpretes rumaram para o aeroporto, mas o caminho seria conturbado com o Taleban já tomando algumas posições na cidade.
“Vá para o aeroporto o mais rápido possível e nós o tiraremos daqui.”
“Eu fiz o que ele me falou, mas já no caminho para o aeroporto havia centenas de pessoas correndo pra lá, era uma confusão generalizada e após duas horas chegamos a uma fila para entrar no aeroporto, mas era muita gente e não havia mais prioridade no embarque. Um caos. Milhares de civis acabaram se misturando com os ex-colaboradores das tropas americanas, como eu. Fiquei um dia inteiro na fila e o caos só aumentava. Quando os Talebans chegaram próximo ao aeroporto o desespero foi geral e eu fugi para a casa de um amigo. Perdemos o voo e a esperança de deixar o país.”
Shafiq ficou escondido em um quartinho na casa de seu primo por dezessete dias e durante esse período soldados Talebans foram procurá-lo na casa de seus pais por três vezes.
Shafiq então fugiu para Jalalabad e cruzou a fronteira do Paquistão rumo a cidade de Peshawar. Seus amigos não puderam viajar com ele pois não tinham passaporte.
“Muita gente ficou presa no Afeganistão e não conseguiu fugir por não ter passaporte. Muitos morreram assassinados tentando se esconder.”
“Chegando a Peshawar liguei para o meu pai e ele disse: Janid, Qasam e Walijan foram mortos, brutalmente assassinados pelo Taleban. Janid foi decapitado! Esses eram meus três amigos, intérpretes que trabalhavam comigo. Que tristeza! Todos com vinte e poucos anos.”
Nesse mesmo dia Shafiq pesquisou na internet e descobriu que a embaixada brasileira no Paquistão estava concedendo vistos para refugiados afegãos.
Assim, ele viajou para Islamabad e foi até a embaixada do Brasil onde apresentou seus documentos e uma entrevista foi agendada.
“Você está em risco? Respondi que meu pai havia me dito que o Taleban esteve em minha casa por três vezes à minha procura e a mulher me respondeu: colocaremos você no visto emergencial.”
Oito dias depois estava com o visto em mãos e já podia viajar para o Brasil.
“O que sei sobre o Brasil foi o que aprendi quando criança nas aulas de geografia, o que mais me lembro é da Floresta Amazônica.”
Após uma escala em Doha no Qatar, Shafiq chegou ao Brasil.
No saguão do aeroporto ele foi pedir informações a uma mulher que mexia no celular.
Ana Cristina esperava um voo para Brasília e se solidarizou com Shafiq, pediu para que ele esperasse um pouco e passou uma mensagem para a irmã que disse para colocá-lo num taxi e mandá-lo para o Bar Al Janiah no bairro do Bixiga. Foi o que Cristina fez.
E de maneira inusitada Shafiq agora estava seguro e pode ser acolhido.
Um jovem franzino, alegre e agradecido, querendo aprender logo a falar português, curioso pelo modo de vida do brasileiro. Esse é o Shafiq que tive o prazer de conhecer.
Existe namoro no Brasil? Como as pessoas se casam? - disparou sem rodeios.