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QUANDO A RUA ENTRA NO BAR:

território, fluxos e chicletes

Diriam alguns arquitetos que todo espaço pode ser transformado. Historiadores diriam que todo espaço pode ser preservado – e outros questionariam tal premissa. Sociólogos diriam que todo espaço pode ser disputado. Mas o que diriam aqueles que realmente ocupam ou transitam por determinado território? O que o termo “território” pode significar, quando pensamos em espaços cercados por muros, portas e janelas?

 

Façamos a ousadia de expressar território a partir das cartografias humanas: em vez de mapas que delimitam territórios localizados nos mapas geográficos, podemos explorar o observar movimentos orgânicos e dinâmicos. Em vez de identidades fixas, a produção delas. São muitas as formas de olharmos para o conceito “território”. Quando traçamos uma linha ao redor de um ponto específico, podemos finalmente assumir a idéia de que território dinâmico produz identidades indefinidas, fluidas - muito embora os sujeitos e grupos envolvidos nesse processo pareçam sempre buscar definições para que, assim, sejam capazes de se alinharem em torno de algo em comum ligado a sua subalternidade social e as lutas advindas de tal condição. Portanto, enquanto alguns teóricos preferem olhar para dentro do recorte territorial que lhes apetece investigar, podemos permanecer à margem desse mesmo “lugar”. Não parece mais interessante entendermos que é nas margens onde os processos de dinamização cultural e social ocorrem, justamente por não estarem fixados em nenhum tipo de oposição ou padronização? 

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Afinal de contas, o que se espera de um grupo de refugiados desconhecidos, que cruzou continentes e um oceano fugindo da morte? Ou de mulheres cuja cor da pele parece ofuscar qualquer ação de alteridade nos espaços públicos? O que podemos esperar de crianças que vendem chicletes nos faróis de uma metrópole como São Paulo, todos os dias às seis horas da tarde?

 

Eu diria que bastante coisa e nada, ao mesmo tempo – e esta resposta também se localiza à margem, reparemos nisso.

 

Estamos no interior de um bar e espaço cultural no bairro Bixiga, em São Paulo. Ele se chama Al Janiah e já se consolidou como um lugar onde diversos grupos e forças periféricas se somam e se atravessam por meio da cultura em muitas de suas expressões. Um lugar jovem, mas já com muita memória na bagagem, especificamente devido as suas origens: um grupo de refugiados palestinos que, por volta de 2016-2017 se juntaram entre recém-chegados ao Brasil e outros que já vivam aqui, para erguer fisicamente toda a estrutura que conhecemos atualmente. Uma breve caminhada por dentro de um bar como este poderia tranquilamente nos revelar muito mais do que a decoração e suas matizes simbólicas: a árvore da vida pintada finamente em uma parede que se destaca com cores vivas e uma mulher-raíz, que se abre para o mundo; o menino Handala sempre de costas aos olhos do observador, fitando, nostálgico, sua casa de onde ele e sua vila inteira foram expulsos e cuja chave está segura em suas mãos de criança... homens guerrilheiros, mulheres combatentes dentro do banheiro vermelho-sangue. Uma espécie de Maria Madalena figura uma guerra cuja maior arma é uma rosa escarlate vibrante, colada a uma parede branca. Marielle Franco ainda nos fita na extensa parede que serve como tela, ao lado do local de onde saem os shawarmas. Nada é despropositado quando pensamos em Al Janiah como um espaço cravado em diversas dimensões de tempo. Mas não estamos em um looping. Estamos em uma História cíclica e espiralada ao mesmo tempo. Revivemos um traço da Nakba enquanto nos misturamos a gentes de tantos cantos do planeta. É 2022. Guerras imensas varrem a Terra; algumas delas, silenciosas, outras midiaticamente espetaculares. É tudo mundo! Quem são os personagens que se repetem pregados nas paredes do bar e nos faróis da cidade?

 

Certa feita me embriagava de gentes madrugada adentro. 800 pessoas se aglomeravam no interior do Al Janiah. Ainda mantínhamos a naturalidade perdida com a pandemia, quando ainda não nos identificávamos tão profundamente com a categoria “sobreviventes”. Três meninos que costumavam vender chicletes nos faróis nos arredores do bar adentraram a área aberta do local para vender seus produtos. Passaram pela recepção do bar, que fica logo à porta de entrada ultrapassando, simultaneamente, a imensa fila de clientes que desejavam entrar. Perambulavam ágeis oferecendo chicletes nas mesas, empenhando o mesmo ritmo que impera do lado de fora. Observei-os. Observei as pessoas que eles abordavam. Ali não havia carros, tempos de farol, buzinas. No entanto, outras barreiras se erguiam entre uma mesa e outra. Os clientes pareciam não compreender aquela situação. “Essas crianças não deveriam estar do lado de fora do Al Janiah?”. Sorvi mais um gole da humanidade. Perguntei a um dos funcionários com quem eu conversava naquele momento se aquelas crianças costumavam aparecer ali, ao que ele me disse “sim, e a gente ‘absorve’”. Por alguns milésimos de segundo me perguntei se ele quis dizer “observa” ou “absorve” mesmo. Porque existe uma diferença e é aí onde habitam os muros.

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Nas gramáticas da noite se vê de tudo e tantos significantes adquirem novos sentidos. Cria-se uma realidade que pode ser perversa ou subversiva - vai depender de imenso número de variáveis e afins. Porém, entre absorver e observar me pareceu existir um abismo, a saber: observar implica em acompanhar; absorver implica em assimilar.

O que aquelas crianças faziam era o próprio processo de, às margens sociais, produzir sua própria cultura.

 

Mas esse procedimento só seria “absorvido” por quem observa com mais atenção – a si e aos outros. Como linhas que costuram sujeitos em uma imensa rede, aquelas crianças percorriam as mesas conversando, convocando e lançando sobre cada um que aceitava suas abordagens outro olhar sobre muros, barreiras, território. Absorver significava, ali, permitir a hibridização cultural. Não importava mais, para muitos clientes, quais eram os limites que os afastavam da vida da rua. Importava era a abordagem, a mistura e – por que não? – a alteridade. Inevitáveis os questionamentos aos meninos: onde vocês moram? Onde estão seus pais? Tão tarde para estarem aqui, não acham? Fenômeno assim dificilmente se dá durante o escasso tempo dos faróis vermelhos. São as magias da noite, capazes de fazer a miséria humana ganhar uma camada mais complexa.

 

Crianças desterritorializadas nos mostram, neste contexto, que ocupar os entre-lugares (lugares temporários porque são fluidos, onde não há garantia alguma de proteção coletiva, fixação ou propriedade privada) joga os indivíduos à possibilidade de negociação. A desterritorialização não significa o apagamento dos indivíduos e suas práticas e, sim, a negociação com o instituído (o bar que separa a massa de indivíduos do ambiente da rua), de ressiginificação (clientes são apenas consumidores ou são, também, sujeitos ativos no processo cultural) e de construção de argumentos sociais para que os sujeitos ocupem o lugar que ocupam, sejam quem são (as abordagens que produzem questionamentos, diálogos e reflexões).

 

Al Janiah é espaço de disputas e também de hibridismos culturais que podem sem regra, durar uma noite apenas ou se transformarem em um agrupamento em torno de uma luta social. Esses espaços de mesclas extremas não funcionam sob a regra pré-estabelecida e, por isso, são orgânicos e vivos. De qualquer forma, podemos assumir a ideia, dentro de um contexto como o Al Janiah, que estar à margem é estar em constante produção de si,

influenciando todos ao redor que também se encontram, de certa forma, em condições semelhantes – mesmo que não se reconheçam dessa forma. Além disso, às margens não existem muros, separações. O território se dissolve, tornando as linhas divisórias em manchas difusas. E é ali onde a produção de mundos acontece. Essa zona aparentemente amorfa revela disputas, hierarquias, todas sempre também ativas, questionadas, não-instituídas.

 

Há uma autora chamada Gloria Anzaldua, cujo pensamento acerca do território e dos processos de desterritorialização, enfoca o saber-mulher, o saber-criança, enfim, tudo aquilo que está para-além do instituído homem. Gloria nos conta que nas regiões fronteiriças (geograficamente falando, estamos entre Estados Unidos e México) há produção de mundo, visto que inclusive a língua é mestiça, tanto quanto os sujeitos e suas regras sociais altamente cambiáveis. Para ela, essa produção de mundo se dá a partir das mestiçagens étnicas, de língua, de papéis sociais e hierárquicos. Podemos concluir, assim, que é o inesperado que pode nos libertar por meio da autenticidade.

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São inúmeras as vezes em que muitos de nós pudemos observar nas escolas diversas tentativas de derrubar os muros institucionais e incluir naquele espaço a comunidade, produzindo novas formas de ocupar, novas regras que incluem outros grupos e suas histórias coletivas e as histórias pessoais de cada sujeito. Porém, tal movimento só se dá dentro da ordem do instituído como “educação”. E no mundo das artes (em que a desterritorialização é a força-motriz da produção cultural), muitos indivíduos tentam, absolutamente desesperados, adentrar o mainstream que legitima a validade de sua expressão – esquecendo-se, assim, de que só se produz o ser autêntico destituindo o lugar das identidades fixas e absorvendo identidades móveis, imprecisas, fluidas. Cito esses exemplos por ver neles certos modos em que a promessa da produção de grupos e sujeitos autênticos, a partir da exclusão, pode se tornar potência de ser. Ao contrário do que a norma social comum declara, as margens sociais estão repletas de movimento, criação e da fúria necessária para provocar imensas explosões no pensamento burguês nesse nosso momento nada idílico da modernidade capitalista-colonial.

 

Mas para isso é preciso assumir a margem como território e a desterritorialização como devir, vir-a-ser. Assumir a ideia de que tomar posse de um lugar é se apropriar de si como processo, não como produto. É abrir mão da certeza e negociar (malandramente) aquilo que está sempre em jogo na cena social: a identidade. É vender chicletes costurando entre-mesas a produção de si e convocando a aparição social do outro neste organismo vivo que a cartografia humana, social chama de território.

Ana Carolina Fiuza

Pesquisadora em Cultura e territorialidades, cozinheira e autora do livro:

Al Janiah: lugar de política é na cozinha etnografia sobre migrações forçadas e refúgio na cidade de São Paulo

Editora  Dialética

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São Paulo

abril 2022