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O MEU LUGAR DE CARIOCA

 

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Rio de Janeiro, fevereiro de 1966: começa minha história com Jacarepaguá. 
De nome indígena, JPA (sigla de Jacarepaguá) quer dizer Lagoa dos Jacarés, conta com extensão territorial de largas dimensões e uma geografia complexa. É possível sentir diferença climática brusca de um sub-bairro para outro.

Jacarepaguá é um grande caldeirão cultural, só de escolas de samba são 5: Mocidade Unida de Jacarepaguá (fundada com o nome de Acadêmicos da Cidade de Deus e trocado depois pelo estigma do que se tornou a Cidade de Deus para o bairro); Renascer de Jacarepaguá que fica no Tanque; União do Parque Curicica que fica em Curicica; Unidos do Anil, no Anil; Coroado de Jacarepaguá (nome dado em referência a novela Irmãos Coragem) também na Cidade de Deus...

 

Brincar carnaval em Jacarepaguá é uma das melhores recordações que tenho da minha infância e juventude, principalmente na Freguesia. Além de estar ao lado da CDD, o que facilitava as vezes ir ou voltar a pé, era um carnaval muito família, e sinto muito meus filhos não terem conhecido esse carnaval de rua, de coreto, que minha mãe nos levava. Eu, minha irmã e alguns amigos de infância que iam sob a tutela dela. 

Além do carnaval, uma outra doce lembrança da minha infância e da minha juventude eram os Cinemas de rua em JPA, o Cine Cisne, o Baronesa, o Cinema da Taquara. Minha mãe começou a deixar eu sair sozinho de casa, proporcionando uma aventura dupla, assistir os filmes e ter a sensação maravilhosa de estar começando a andar com as próprias pernas, no entanto, andar com as próprias pernas era uma grande questão pelo fato de ser cria da CDD. Na Cidade de Deus tive uma infância e uma juventude muito dura, não somente pelo aspecto de conviver com a violência e as dificuldades financeiras daquela ocasião dos anos 80 e início dos anos 90, como alta inflação, escassez de comida, roupa dos filhos da madame, isso nunca foi a maior dificuldade e sim viver a vida inteira com o preconceito da sociedade com morador de favela, e sendo preto isso tem peso dois. 


Essa questão social e também racial influenciou diretamente na nossa educação, minha mãe tinha essa percepção muito latente, ela se preocupava, tinha muito medo que eu fosse preso à toa. Se os policiais vissem uma criança ou um jovem negro na rua de boné, cabelo loiro, bermuda caindo na bunda, ouvindo funk no walkman, no mínimo, pensavam que o aparelho era roubado. Quando perguntavam de onde eu era e dizia que era da CDD, eles nem pensavam mais: tinham certeza que era roubado. Eu imagino a dor da minha mãe ao ter de conviver com a liberdade do seu filho vigiada, cerceada e roubada pela lente latente do racismo. 

 

Essa dor da minha mãe foi constante e com o passar do tempo agravou. Não demorou muito, os cinemas de rua foram sumindo da cidade do Rio de Janeiro, no caso de Jacarepaguá, com exceção do Cine Cisne, na Freguesia, a grande maioria se tornou igreja. O Cisne não se transformou em uma Igreja, mas teve um destino irônico: foi demolido e hoje por lá  passa a avenida Carlos Lacerda, nome do idealizador da Remoção que implantou a Cidade de Deus no coração de Jacarepaguá, para onde meus pais foram levados. Ambos vindos de bairros nobres da cidade maravilhosa, meu pai removido do Morro do Macedo Sobrinho no  Humaitá e minha mãe da Gávea, removida do Parque Proletário. 


Os cinemas foram muito importantes na minha vida, eu sinto que perdi muito culturalmente falando com a retirada dos cinemas de rua da cidade, não só de JPA, mas de Madureira por exemplo, que eu frequentei muito com minha mãe.

 

Na década de 90 quem ocupou esse lugar na minha vida e formação, e que foi igualmente importante, foram os bailes funks. Inicialmente a matinê do Coroado de Jacarepaguá e posteriormente tanto os bailes de favelas de toda a Cidade Maravilhosa, quanto de todos os bailes de galera do Rio e Grande Rio, Caxias, Mesquita, São Gonçalo e muitos outros. Esses bailes me deram a noção de Cidade, eu me apaixonei pelo Rio de verdade por que o funk me deu isso. O baile foi o meu acesso, meu ponto de mutação, de amadurecimento. A Baixada Fluminense entrou totalmente no meu radar. Deixei de ser um morador da CDD para me tornar um carioca da Cidade de Deus. 

Jacarepaguá foi meu heliponto, de lá que eu decolei pro mundo, logo, é meu chão, minhas raízes, e a CDD é minha casa, mas foi através da cultura que encontrei meu lugar de carioca  no mundo.

Anderson Quack 

Diretor, produtor e escritor

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Rio de Janeiro

março 2021