O PODER DO FEMINISMO ÁRABE
Parece um pouco deslocado – para um ouvinte bombardeado pela mídia ocidental – ouvir sobre o “feminismo árabe”. Afinal, as mulheres árabes não são aquelas vestidas de burca, oprimidas e sentenciadas a centenas de chibatadas em nome da religião? Mas falar deste movimento é muito útil, de primeira os ouvintes acabam descobrindo que árabes e muçulmanos são diferentes, e segundo percebem que o empoderamento feminino pode também possuir uma identidade própria, longe da generalização.
Mas o que se quer dizer quando falamos de feminismo árabe?
Todos os dias vemos pessoas usando a bandeira do feminismo para denunciar misoginia, machismo, como também para levantar questões sobre o papel da mulher na sociedade. Entre defensores e detratores, poucos compreendem que o que chamamos de simplesmente de feminismo é uma concepção criada por e para mulheres brancas ocidentais, que não suporta a diversidade da realidade feminina em todo o mundo.
O feminismo não é universal! Alguns grupos já discutem sobre o feminismo negro, por exemplo, porque a realidade da mulher negra nas sociedades pós-coloniais é muito distinta da de uma mulher branca, assim como os estereótipos que lhes são impostos, dessa forma vemos que ser mulher e ter direitos passa por mais camadas que apenas do gênero, da sexualidade e do sexo biológico.
Da mesma forma que mulheres negras perceberam que os fundamentos do feminismo “padrão” não atendiam aos anseios e às necessidades de seu grupo, muitas mulheres árabes e muçulmanas perceberam que o feminismo branco ocidental não comportava a dimensão e a complexidade do direito feminino no mundo árabe.
Primeiramente, muitas vezes o discurso feminista tradicional se coloca como racista e imperialista. Como assim? Já não teve a impressão que alguns discursos parecem impostos e desrespeitosos com a cultura local? Não que certas atividades ditas culturais não possam ser nocivas às mulheres, como é a mutilação genital feminina no Egito. Isso é violência e violência de gênero! Porém muitos discursos feministas tradicionais se colocam como “salvadores” de mulheres culturalmente inferiorizadas, que necessitam da civilização ocidental para sua evolução. Como exemplo, vemos muitas feministas que julgam o hijab (véu muçulmano) como exemplo de opressão e urgem para desvelar as mulheres muçulmanas, não se importando se elas realmente querem deixar de usar o véu ou se concordam que o mesmo seja algo usado para seu apagamento.
Recentemente foi lançado no Brasil, o livro “Contra o Feminismo Branco” da paquistanesa Rafia Zakaria, o qual questiona abertamente autoras feministas famosas, como Simone de Beauvoir, assim como o conceito de sororidade e da hipersexualização dos movimentos feministas padrões que enxergamos como “corretos”. Zakaria, muçulmana e não árabe, nos traz uma visão da mulher fora dos holofotes ocidentais, questionando a amalgamação que muitas feministas impõem ao que consideramos como “liberdade feminina”. Muitas vezes, um padrão de conduta para uns grupos é bem visto, mas para outros há um peso cultural e histórico de detrimento, por isso o grande perigo da universalização e da generalização. Aqui entramos com o exemplo do mundo árabe: por muitos séculos no auge do imperialismo ilustrado – entre os sécs. XVIII e XIX – era de notório interesse o turismo sexual de poetas e burgueses europeus ao Oriente Médio, o qual era percebido como o mundo da luxúria, misticismo, primitivismo e paixões. Essa imposição ao árabe de uma “sensualidade nata”, tema muito bem discutido pelo historiador Joseph Massad em seu livro “Desiring Arabs”, levou a muitos árabes a um movimento conservador, pensando no desfrute da sexualidade como algo abjeto e indício de uma sociedade atrasada. O resgate de obras de cunho sexual e erótico da época clássica é ainda um trabalho marcado pelo preconceito e pela desmoralização no mundo árabe, mas curiosamente são feministas árabes que tem chamado a atenção ao pedir o resgate dessa bibliografia para que a mulher árabe possa novamente ter sua sexualidade reconhecida e validada.
E por que a mulher árabe enxergaria nestas obras uma espécie de salvação? Atualmente, no mundo árabe, o tema da sexualidade é um tabu; ao mesmo tempo, o modelo de liberdade sexual trazido pelo feminismo ocidental não se acomoda aos valores das culturas locais, com a necessidade da perda da virgindade, da variedade de parceiros sexuais e da exposição da vida sexual como forma de legitimação do poder sobre seu próprio corpo. Estas ações não condizem, muitas vezes, ao que uma mulher árabe considera “liberdade”. No livro “À Prova do Mel”, a escritora Salwa Al-Neimi demonstra que o resgate das obras erotológicas árabes traria também naturalidade ao se falar de sexo na própria língua árabe, e mais do que trazer para as mulheres árabes a necessidade de uma liberação sexual no sentido ocidental, a leitura dessas obras busca regatar o valor que o prazer feminino tinha na prática sexual de seus antepassados. O sexo voltaria a ser algo próprio da cultura árabe, e não mais um “item importado”.
A questão é que a mulher árabe se apresenta deslocada ao comparada com o feminismo ocidental. Isso acontece porque sua figura como mulher é invalidada na sociedade globalizada, que apenas a enxerga na dicotomia: sensual com a dança do ventre, ou reprimida com o véu. Estas mulheres querem seguir com sua identidade e valores locais, mas sua liberdade passa além de uma padronização de sua sexualidade ou uma rejeição de sua cultura. Hoje vemos que muitas mulheres lutam por direitos iguais e pela valorização de ser mulher sem abrir mão de sua identidade, como vemos no exemplo da cantora e influencer libanesa
Remie Akl. Remie foi responsável por um vídeo viral em que associa o doce “baklava” à mulher, criticando justamente a forma inferior e desrespeitosa que muitas mulheres são vistas e tratadas em seu país. Graças a seu trabalho, sempre crítico e afiado sobre as relações de gênero no mundo árabe, ela tem liderado o grupo SAWTIK, iniciativa da Spotify em divulgar vozes árabes femininas da região MENA (Oriente Médio e Norte da África)., alcançando muito sucesso entre mulheres árabes. O poder de Remie Akl é denunciar o patriarcado, a diferença social entre homens e mulheres e, também, melhorar a relação entre estes dois gêneros, o feminino e o masculino. Sendo árabe e falando de dentro de sua cultura, a luta de Remie por liberdade e por igualdade é transmitida de maneira horizontal, sem julgamentos e juízos de valor, pois reconhece aquilo que é importante e aquilo que deve mudar dentro de sua própria sociedade. O lugar de fala é um ponto importantíssimo que foi esquecido pelo movimento feminista tradicional ao se tratar de mulheres que estão além de suas fronteiras culturais ocidentais. Afinal, reconhecer a voz de uma mulher e sua luta deve passar por seu local social (ethos) e por sua realidade histórica.
Celia Daniele Moreira de Souza
Arabista e Professora de História Medieval da UFRJ
foto printerest
Rio de Janeiro
abril 2022