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A REVOLTA DOS CACHORROS

 

É uma noite como outra qualquer. O governador mostra a bunda no programa eleitoral, o papa é eliminado do Big Brother 29, a Lei Áurea é revogada numa votação por e-mail na novela das oito e a ciência comprova a existência de Adão e Eva. Nessa noite calma, sem que ninguém saiba porque, os cachorros se recusam a sair de casa.

Todo mundo estranha. Os cachorros levam a vida latindo e passeando, têm médicos, psicólogos, um padrão de vida igual ao da classe média espanhola. Por que a revolta? No intervalo da transmissão do jogo, um tradutor canino revela: os cachorros exigem equiparação aos jogadores de futebol, incluindo patrocinadores e contratos na Europa.

Há um debate na TV, onde o presidente é contra a reivindicação canina. Os cachorros, então, decidem parar de latir e de abanar o rabo. A tristeza que toma conta do país é tamanha que na manhã seguinte a Lei do Cão é aprovada no Congresso e o presidente renuncia. Agora, para cada filho, as famílias também têm que ter um cachorro. Num lance de ousadia, uma rede de tv bota um boxer como apresentador do jornal da noite. O ibope dispara. E os cachorros ampliam sua participação na sociedade – são delegados, senadores, magistrados, médicos, apresentam programas de auditório, têm partido político, lugares nos cinemas e nos ônibus, boates especializadas, ioga... E que grandes economistas eles se revelam! Com os cachorros podemos finalmente exercer a diversidade, que se mostrou impossível com os chatos dos orientais e dos africanos.

É verdade, muitos cães começam a dar problemas. Brigam nas boates, usam drogas, formam gangs que assaltam e mordem. Se envolvem em casos de doping e corrupção. E a candidatura de um afghan hound à presidência tem causado grande polêmica. Mas a civilização canina está apenas começando. E não há como negar que estamos todos muito, muito felizes.

 

Cesar Cardoso

Escritor, dá a patinha e finge de morto.

Rio de Janeiro

 

setembro 2020