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COMO SE TORNAR UMA LAGOSTA

 

 

Tempos esquisitos. Muito. Demais.

Na França o isolamento social acabou há quase três meses. Tudo mudou, nada mudou. As vezes eu acho o fim desse período ainda pior do que o período mesmo. Pois não é um fim, está um fim. Um fim tímido, hesitando em chegar. Um fim dissimulado, sonhando com seu novo começo. Com seu renascimento.

 

A segunda onda da Covid-19 ameaça o planeta.

Alguns países já decidiram isolar de novo os seus povos. Todo dia a Organização Mundial da Saude avisa: se nós quisermos evitar a submersão, temos que nos comportar bem. Isso quer dizer usar máscaras e não se aproximar dos próximos. A segunda onda não tem nada a ver com o mar. Mas me faz lembrar dele.

 

Estou com saudade do mar. Estou com ciúmes da lagosta.

Durante o confinamento eu redescobri a meditação, pelo Zoom e graças a vários podcasts. Não meditei para me acalmar mas para aceitar, ou tentar digerir, a minha nova condição de mulher trancada em casa. Numa sessão ouvi falar da lagosta. De repente fiquei intrigada. Ela possui um poder incrível, que nunca tive e que nunca terei. Ao menos que eu me torne… uma lagosta.

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A lagosta não é só uma iguaria. Mergulhada na maionese ou num suco delicado de limão, no caso de você estar de dieta. Ela é uma lição de vida. Indica o caminho certo, uma maneira de lidar com todas as dificuldades. Todas, exatamente. Inclusive o estresse, a solidão forçada e a ausência de perspectivas.

 

Às vezes mariscos se revelam mais inteligentes do que seres humanos.

Prova disso? A lagosta. Ela tem uma casca, todo mundo sabe disso. O que eu não sabia é o seguinte: a lagosta cresce sob a casca, mas esta não cresce. A casca da lagosta pode se comparar com os sapatos de uma criança. Eles não mudam de tamanho, mesmo que os pés cresçam. Isso dói. Muito. Pouco a pouco a lagosta está apertada na casca, prisioneira de uma célula que ela mesmo se criou. Coitadinha. Mas ela não é de reclamar. Prefere agir. Quando percebe que a sua casca está estreita demais para acolhê-la, ela vai se esconder numa grota, longe dos olhares indiscretos.

 

Sozinha na escuridão, a lagosta se livra da sua velha casca. Não sei como ela consegue fazer. Talvez ela seja, além de ser super comestível, um pouco contorsionista. Enfim, agora ela fica nua na grota. Isolada. Ela não tem as redes sociais para comunicar com os familiares. Não tem Instagram. O que ela faz 

então? Nada. Ela aguarda com serenidade e paciência, até uma nova casca mais adequada nascer, e crescer. É óbvio que leva tempo. E depois? Ela vai reproduzir o mesmo fenômeno várias vezes, até ela atingir o seu tamanho adulto. Antes de acabar num restaurante chiquérrimo. Como é que a lagosta atravessa essas provas? Parece que ela tem entendido tudo da vida. Será que ela também medita? Será que é uma discípula de Buddha? Ela encarna um exemplo de coragem e filosofia, a força vital de que eu preciso.

 

De vez em quando eu me vejo como uma lagosta.

Encurralada, mesmo que eu não esteja mais crescendo. Nós vivemos num mundo sob pressão. Ninguém aguenta mais o tempo longo. O tempo da espera, da sedução, do descobrimento de um remédio ou de uma vacina, o tempo do amadurecimento de frutas e legumes segundo as quatro estações, da pesquisa de uma informação, o tempo da reflexão, da escrita de um romance.

 

Está aí o meu novo projeto, claro e simples: decidi me metamorfosear numa lagosta.

Já tenho um ponto em comum com ela. Cada vez que a minha pele apanha o sol, se torna da mesma cor do que a casca dela, quer dizer bem vermelha. Mas isso não é o suficiente. Eu quero uma metamorfose mental. Pois ainda tenho sérias divergências com a filósofa do mar. Sou impaciente. Um pouquinho viciada em redes sociais. E não sou muito fã da solidão. Tanto faz, o desafio vale a pena.

 

Eu gostaria de encontrar uma grota simbólica para me trancar nela. Deliberadamente. Escolher um lugar seguro. Minha caverna pessoal, ideal. E tomar o tempo necessário para me soltar da casca que está me limitando. Durante o isolamento social da Covid-19, acho mesmo que ela encolheu. Preciso agora de reconectar as minhas raízes profundas, a minha dimensão humana.

 

Quantas cascas ainda me sobram antes da última?

A famosa casca final, com a qual vou conviver até a morte me mergulhar no seu banho de água fervente, antes de me degustar. Com maionese? Não sei, nem quero saber.

Estou com sede de espaço e de desenvolvimento. Prestes a arriscar minhas antigas cascas. Com calma, confiança e determinação, sem medo. Já é hora. *

 

Paris, dia 6 de agosto de 2020

 

 

*texto originalmente escrito em português

Corinne Klomp

Autora e roteirista francesa

Paris

 

agosto 2020