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O PESO PÚBLICO

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Na França, ao entrar em alguns vilarejos, se pode encontrar uma pequena construção de pedra de cantaria, chamada de peso público. É como uma casinha, sem moradores, com duas balanças externas. O peso público era ligado aos impostos. Foi construído em quase todas as cidades e aldeias do país no século XIX para pesar, e depois taxar, as mercadorias e o gado chegando lá. O pesador, oficial empossado, supervisionava na casinha o bom desenrolar da operação. Ele emitia um certificado de pesagem, junto com a verba da soma devida. Em 1943 esse tipo de imposto foi abolido e o uso do peso público abandonado.

 

Porém, de vez em quando, uns profissionais como pedreiros, vinhateiros ou lenhadores continuaram a aproveitá-lo. Hoje em dia ninguém se serve mais dele. Faz parte do patrimônio francês e se tornou uma curiosidade histórica, relíquia dos tempos passados. Eu acho isso uma pena. Nessa época de pandemia, de crise econômica e climática, de enfraquecimento tanto físico quanto mental da população mundial, eu sonho em assistir ao renascimento ou, ainda melhor, à reinvenção do peso público. Não enquanto imposto obrigatório, mas enquanto alívio gratuito. A ideia, bem simples, consistiria em utilizar essa ferramenta para nós identificarmos a carga psicológica que nos constrange. Pesar, não para pagar qualquer multa, mas para acabar com o fato de pagar, por exemplo, pela nossa culpa e pelos erros do passado. O novo peso público seria uma espécie de balança espiritual. Capaz de medir a quantidade de tristeza, arrependimentos e pensamentos sombrios. Com precisão em gramas. Uma máquina futurista que mostraria o sobrepeso virtual de tudo o que nos impede de viver ou de avançar. Seria só ter a coragem de enfrentar a nossa realidade psicológica 

e subir na balança. Depois da pesagem o pesador, ou a pesadora, nos daria um certificado com o detalhe do nosso peso interior, incluindo a repartição concreta das nossas várias preocupações e a evolução delas desde a última pesagem. Assim teríamos uma visão realista, as vezes assustadora, do nosso estado mental geral. Isso criaria em nós uma distância saudável. O fato de saber que temos um excesso de culpa ou de ciúme nos ajudaria a agir para reequilibrarmos nossas fraquezas e nossas forças. Ao descer da balança nos sentiríamos estranhamente mais leves. Não seria uma boa perspectiva?

 

2. Cereja do bolo, o funcionário em cargo do novo peso público ofereceria um presente a cada um de nós. Um saco misterioso, quase mágico. Do mesmo peso do que o do nosso mal-estar em curso. Uma seleção de coisas que gostamos de fazer ou de consumir. Produtos de primeira necessidade ou idéias deslumbrantes que poderiam atenuar nossos sofrimentos. Livros, doces, frutas, lista de pessoas desconhecidas para contatarmos e de amigos de sempre para revermos, sugestão de atividades esportivas ou intelectuais, proposta de projetos para darmos novo rumo à nossa vida, etc. Um presente grande nos dias ruins, pequeno nos dias bons. Uma gratificação que decidiríamos deixar para mais tarde ou, pelo contrário, aproveitar rápido. De qualquer modo o objetivo final seria o mesmo: engolir o conteúdo do saco, e digerir o que nos incomoda. A língua francesa possui também uma expressão com a palavra “saco”, que não tem nada a ver com a expressão em português. Em francês não se fala de “encher o saco” mas de “esvaziar o saco”. Isso significa desabafar, quer dizer exprimir tudo o que está a pesar no coração. Graças à essa ótima idéia de novo peso público, esvaziar um saco visível, tangível e agradável permitiria a expulsão de um outro saco, invisível, imaterial e fonte de dor. Cada vez que eu tenho um tempinho, vou dar uma caminhada nos parques de Paris. No jardim do Luxemburgo, que fica perto da famosa universidade La Sorbonne, tem umas balanças velhas. Evidentemente não são antigos pesos públicos. Até agora, nunca vi um ser humano subir numa delas. Eu não sei se estão ainda funcionando. Acho que vou investigar o assunto. Durante o meu próximo passeio no lugar, se eu me sentir deprimida, ou chateada, vou me pesar.

 

Sem dúvida. Será que as balanças do Luxemburgo poderiam me livrar da minha saudade? Me propor, em troca da minha pesagem de carne ou de mente, um saco de desejos, um monte de prazeres? Não tenho nada a perder, quero experimentar. Se eu não receber o saquinho, tanto faz. No quiosque ao lado do peso botânico comprarei um crepe com chocolate. Ou dois, conforme o peso – aquele dos meus exageros alimentares, aquele da minha tristeza? – mostrado pela balança. E depois? É só torcer para essa pandemia logo acabar, e deixar a vida fazer o resto.*

 

*texto escrito originalmente em português. 

 

 

 

Corinne Klomp

escritora e roteirista francesa

 

Paris

fevereiro de 2021