território livre  |  desde 2020

 

A INDIFERENÇA QUE NÃO SE APAGA

 

Há vestígios da ditadura empresarial-militar em todo pedaço de terra deste país. Parte deles envolvem algo mais antigo, os hábitos de truculência que vem do passado escravagista. Estes hábitos, no decorrer das ditaduras instituídas no século 20, foram normatizados e ganharam uma face oficial, isto é, foram institucionalizados, se atualizaram e se sofisticaram fora e dentro das instituições de segurança que compõem o Estado brasileiro. 

 

De diferentes perspectivas, três documentários nos introduzem a questão da sistematização de métodos e instrumentos de violação dos direitos humanos e permitem constatar determinadas continuidades desse passado no presente de catástrofe política, caos sanitário com a covid-19 e mais uma crise do capital. Os filmes em questão são Torre das donzelas (2018), de Susanna Lira; Soldados do Araguaia (2017), de Belisario França; e Cidadão Boilesen (2009), de Chaim Litewski. Os diretores abordam, respectivamente, a condição das mulheres presas políticas, o tratamento dado aos recrutas de baixa patente do Exército brasileiro, torturados durante o processo de treinamento para depois participar de torturas e assassinatos de jovens e trabalhadores rurais acusados de participação ou ligação com a Guerrilha do Araguaia, no Pará, e, finalmente, a participação dos empresários no financiamento e manutenção da ditadura instituída em 1964. 

 

 

As práticas de aniquilação do direito à vida e a uma existência com dignidade social e cidadã ganharam uma dinâmica própria tanto na ditadura do governo de Getúlio Vargas (1937-1945) como na dos governos militares, no poder até 1985. Nesta, a sistematização dos métodos de tortura veio com toque francês. Se reproduziu por aqui o que o Estado francês havia testado na Guerra de Independência da Argélia (1954-1962). Talvez não seja por acaso que o general Paul Aussaresses, que confessou ter torturado dezenas de prisioneiros naquele país, tenha ocupado o cargo de adido militar da França no Brasil entre 1973 e 1975. 

 

Estes enquadramentos temáticos são ainda pouco debatidos ou sequer percebidos na esfera pública. A ação e mobilização política dos grupos empresariais foi das casas dos fazendeiros aos espaços industriais e de serviços nas cidades. Empresas nacionais e internacionais e organizações patronais industriais, comerciais e rurais tiveram participação tanto no processo que envolveu o golpe civil-militar como na manutenção da ditadura. Isto é detalhado por meio de diversos documentos no estudo 1964: a conquista do Estado, de René Armand Dreifuss. O caso do presidente da empresa Ultragaz, Henning Albert Boilesen, é um dos emblemáticos no período. Ele, junto com outros empresários, financiaram a infraestrutura para a institucionalização da violência, aniquilação de direitos, dominação e desumanização de corpos, conduzidas por funcionários do próprio Estado em espaços oficiais e clandestinos. 

 

As consequências desse investimento aparecem nos relatos das mulheres do Torre das Donzelas, nome que se refere à cela onde ficaram no presídio Tiradentes (SP), e dos soldados do Araguaia, colocados à margem pelo próprio Exército devido as denúncias sobre os traumas e maltratos pelos quais passaram. No primeiro grupo estavam a ex-presidenta Dilma Rousseff, intelectuais, artistas e trabalhadoras. No segundo, filhos de trabalhadores da região do Araguaia. 

 

Outra das frentes de repressão foi a Operação Bandeirantes (Oban), criada em 1969, para combater organizações que faziam oposição à ditadura. Boilesen era um dos responsáveis pela arrecadação de verbas entre os empresários com o fim de oferecer a infraestrutura para atuação dos agentes da Oban - quadro composto por militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, policiais federais, agentes do Serviço Nacional de Informação e policiais da Delegacia de Ordem Pública e Social. O grupo que Boilesen mobilizou incluiu empresários do setor automobilístico e de material pesado, além dos proprietários dos bancos, da Federação das Industrias do Estado de São Paulo e veículos de comunicação como a Folha de São Paulo. Uma das contrapartidas que tiveram veio por meio da política econômica, que criou dispositivos para libertação de crédito, demanda continuamente compartilhada pelos empresários urbanos e rurais. O contexto econômico e legal da ditadura foi favorável a eles. 

 

O esquema financeiro, sem controle ou prestação de contas, articulado por Boilesen nos remete ainda a outro momento no passado, quando verbas públicas foram destinadas, secretamente, para a polícia durante o governo Vargas. No livro Falta Alguém em Nuremberg, o jornalista David Nasser narra que bilhões de cruzeiros foram dados para o combate aos comunistas e ao suposto clima revolucionário. O departamento da polícia onde atuava Filinto Müller, notório torturador, chegou a gastar quase quarenta vezes mais do que o necessário para equipamentos de todas as Forças Expedicionárias Brasileira. Ainda em 1939, Müller conseguiu do governo um crédito suplementar de 3,5 milhões de cruzeiros (equivalente a 11,1 milhões de reais). A justificativa para ter acesso a verba foi a realização de uma operação para prender 130 operários, relata Nasser. O resultado do acesso a recursos públicos, sem prestação de contas, foi o enriquecimento de chefes da polícia (alguns deles integralistas), que compraram terrenos e construíram casas mais sofisticadas para morar, como a nova residência do próprio Müller nas proximidades do Clube dos Caiçaras, situado às margens da Lagoa Rodrigues de Freitas, na região nobre do Rio de Janeiro. 

 

No presente, tomado pela onda bolsonarista, novamente, parte dos empresários são protagonistas no apoio à eleição e ao governo de Bolsonaro. Agora persistem dois aspectos comuns: uma política econômica voltada para interesses empresariais e do capital financeiro e a indiferença à promoção da violência, aos ataques à democracia e a defensa do Ato Institucional n° 5 (AI-5), que autorizou o fechamento do Congresso Nacional, a cassação de mandatos parlamentares; institucionalizou a repressão política e o terror promovido pelo Estado; a suspensão de direitos políticos de qualquer cidadão; o afastamento ou a demissão de funcionários públicos dos seus cargos e a passagem para a reserva de militares legalistas ou democráticos; e a nomeação de interventores no lugar de governadores e prefeitos. Se a posição política de alguns empresários foi clara no passado, apesar de alguns se declararem “apolíticos”, no presente, ela é explícita e sem adjetivos.

 

Por mais que o senso comum insista no “deixa o passado para trás”, ele cintila no presente. Não se apaga. Ainda nos cabe enfrentá-lo para frear os processos de interrupção do presente e do futuro, visto que ambos são descontinuados quando avanços sociais, políticos e culturais ensaiam qualquer mudança no nosso tecido social. Com razão, como colocava Antonio Gramsci em concordância com o poeta Friedrich Hebbel, “viver quer dizer tomar partido”. E “indiferença é apatia, parasitismo, velhacaria, não é vida”. É também legitimar os silenciamentos que interessam aos que se pensam donos do poder. 

 

Elisandra Galvão

Cientista social e jornalista

facebook

Rio de Janeiro

 

Arte Wesley Duke Lee

Julho 2020