ESTAR ATOLADO NA LAMA
É UMA QUESTÃO DE PERSPECTIVA
Mangue - O conceito Estuário. Parte terminal de um rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos dos mares. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo. Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem dos alagadiços costeiros. Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Para os cientistas os mangues são tidos como os símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
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Assisti ao documentário, Chico Science - Um Caranguejo Elétrico, dia desses.
Science que tinha a ciência no nome, “metamorfoseou-se” em homem-caranguejo, inventou uma forma não apenas de fazer algo, mas a possibilidade de ser. Explorou modos de comunicação que extrapolam o domínio humano, manifestando interações entre outras formas de vida, num enredamento
entre uma ecologia do ambiente e uma ecologia da mente.
O Manguebeat foi uma cena que gerou, no início da década de 90, ecos estético-culturais no cinema, na moda, artes plásticas, dança e literatura.
E foi nessa época que Gil e eu, saídos de Porto Alegre chegamos a São Paulo. Eram tempos de surgimento da MTV, dos shows no Aero-Anta. Atolávamos na lama em festas no Django bar, e tempos em que General, era nome de uma revista de André Forastieri e Rogério de Campos.
E esse, foi o movimento da minha geração. Chico Science e Nação Zumbi fazem parte da minha formação, com eles passei a olhar de outra forma para o nordeste e a brasilidade. Não sei se chama movimento ou cena, mas o fato é que o manguebeat foi pura produção de sentidos: musical, político e estético para mim.
Chico levou o caranguejoboys a mais extrema das experiências antropofágicas com sua parabólica fincada na lama.
Não era moda, era um modo de existir. Com seus óculos enormes, calças de tergal, chapéu de palha, a maneira como seu corpo se movimentava de lado como um caranguejos na lama, tudo isso influenciava na sua performance magnética. Um processo orgânico, onde o homem, o caranguejo e o ambiente uniam-se em um só.
Imergir em outras subjetividades, linguagens, perspectivas, outros mundos, me fez lembrar de Oswald de Andrade, propondo com radicalidade, que vivamos de outro modo, que sejamos de outro modo, e sugeriu em seu manifesto Antropófago, entre outras coisas, que a alegria é a prova dos nove, o equivalente da “diversão levada a sério” de Science.
O movimento antropofágico não foi somente um movimento estético, ele foi político, e para eles, a revolução literária, religiosa, política e social, deveriam acontecer como uma coisa só.
A lama que Chico cantava, floresceu numa Recife violenta e degradada e talvez por isso mesmo, era uma lama rica em fertilidade criativa, de invenções de mundos, adubo para renovação e transformação constante de ideias, e de outras formas de existência.
Mas de lá para cá muita coisa mudou no Brasil.
Destruição, desmatamento, Belo Monte, Bolsonaro, morte, morte, mortes ....
Nossa subsistência é provida por paisagens “arruinadas”.
Vidas num mundo em pedaços.
Estamos reféns da distopia.
Paramos de imaginar o mundo criativo e alegre como Science nos apresentou.
Chico, já não está mais aqui.
O Science do nome, virou uma questão de fé e crença.
O chapéu de palha, símbolo do povo nordestino, se transformou em sinônimo de um povo pouco civilizado para um grupo de sulistas preconceituosos.
A arte tem poder. Precisamos, nós que trabalhamos com ela, pensar em outros caminhos, novas perspectivas que possam apontar, invocar outros mundos, outras organizações cosmológicas.
Mas estou aqui em minha casa.
E assim que puder, vou sair e encontrar os amigos para tomar uma cerveja, antes do almoço, que é muito bom, para ficar pensando melhor, e que desse encontro, seja possível redescobrir a alegria. E a trilha sonora da nossa vida seja o sangue nordestino correndo com vontade nas nossas veias.
Bettine Silveira
Figurinista e
Pesquisadora de saberes ancestrais e tradicionais
Rio de Janeiro
Lambe-lambe Chico Science
maio 2020
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No momento que escrevo esse texto, é a Baía de Guanabara, área de Proteção Ambiental de Guapi-Mirim, importante área que abriga o ecossistema responsável por resguardar os manguezais, ainda preservados do entorno da Baía de Guanabara (o maior de todo o Estado do Rio de Janeiro), está sob a ameaça.
Além das inúmeras espécies que dependem dali, toda a economia em torno da pesca artesanal e do turismo de base comunitária também está ameaçada.
Se puder ajudar. Vem junto.