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CORAÇÕES ABANDONADOS

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Tem uma telenovela que passa de segunda a sexta, no mesmo horário, no mesmo canal; cada segmento tem a mesma metragem; cada segmento é interrompido pelos mesmos anúncios a cada intervalo pré-determinado; tudo é exato, não existe acaso, a trama não pressupõe o menor deslize.

O enredo é simples e gira em torno de uma mulher extremamente apaixonada pelo marido. Existem outros núcleos de apoio. Algumas intrigas paralelas dão sustentação à narrativa. Cada personagem possui sua personalidade e sua própria sina; roteiristas e diretor se encarregam de que nada saia dos eixos: enlaces e desenlaces já estão previstos desde o começo. No entanto, quando a mulher morre no meio da história, surgem boatos e fofocas. E o receio de que novas concepções existenciais possam confundir o telespectador.

 

Na verdade, há uma dúvida crucial: quem morreu foi a atriz ou a personagem? Como nada pode alterar o desenvolvimento de uma história que vai ao ar todo dia, na mesma hora, no mesmo canal, e que acontece no mesmo tempo em que o tempo acontece, a produção dá seguimento normal à novela e os capítulos se sucedem à revelia deste pequeno contratempo.

No set de gravação, há um espelho, comprado pelo cenógrafo nesses brechós de móveis antigos. Quando a atriz se aproxima para escovar os cabelos e verificar se o vestido estaria de acordo com a festa que sua família daria dali a algumas horas no amplo jardim da mansão, aparece refletida a imagem da mulher morta. Ela está igualzinha (os mesmos cabelos escovados, o mesmo vestido que usaria para ir à festa). A atriz se assusta, mas disfarça e a cena continua sendo filmada. A mulher morta resigna-se, continua com sua mesma personalidade e não tenta modificar seu destino pré-programado. Pelo contrário: imita o melhor que pode os cacoetes e as características da outra. Ambas (atriz e personagem) sabem que uma das duas morreu, mas nada podem fazer. Elas têm que continuar o que lhes foi estabelecido pelo script.

 

Só uma pessoa tem certeza absoluta que a mulher está morta: o marido. No meio da festa na mansão do jardim, ele aparece e diz suas falas como se nada tivesse acontecido, mas percebe-se que está muito triste. Houve uma perda e ela é irreparável. Olha para a atriz que interpreta sua esposa com uma ternura protocolar e a abraça, inconsolável, fazendo seu papel. Mesmo sem sentir nada pelo personagem, a atriz retribui. Providencialmente, a telenovela corta para uma outra cena do outro lado do jardim da mansão, onde garotinhos e garotinhas se escondem atrás de árvores, chapinhando os pés nus em poças de água. A música sobe. Entra o intervalo.

 

Depois de cinco minutos de anúncios, a vinheta entra no ar. Ouve-se um trinado de telefone em OFF/corta para o interior da mansão. O personagem do marido atende: é a mulher morta que quer falar com seu marido. Ele fica sem saber o que fazer. A imagem titubeia e treme um pouco. A câmara se afasta, abre a angular, mas sempre com foco nos dois, que agora são vistos conversando ao longe, através da vidraça. A música encobre as falas. Ficamos sem saber o que ocorre na realidade do tempo presente, mas é sempre possível supor alguma coisa, pois outro corte nos remete novamente ao jardim: a esposa olha para a cena do personagem do marido falando ao telefone sem rancor, mas está um pouco apreensiva. Que tipo de consciência de si próprios pode haver entre atores e personagens a partir do momento que ambos vivem em mundos diferentes? Ficarão aprisionados para sempre no interior de uma trama oclusa que não admite uma simbiose real? Seus sentimentos não têm a menor liberdade de aflorar, afetos serão dissimulados, pois atores e personagens estão em patamares diferentes: nunca irão se encontrar, como naquele quadro de Escher. Na verdade, o exílio engloba um paradoxo: há segurança, mas não existem referências.

 

A mulher morta insiste ao telefone: quer falar com seu marido, que, pressupõe-se, esteja no jardim, atuando, contracenando (e, naquela cena pungente, como vimos, tinha abraçado a mulher). O personagem do marido não reconhece a voz da mulher. A voz em OFF da atriz ao telefone (que faz a mulher morta) provavelmente também está confusa, não entende a trama em tempo real. A câmara fecha no pingente de um lustre da sala. Entra o segundo intervalo: os anúncios se repetem.

 

Depois de mais cinco minutos, a vinheta entra no ar. A câmara dá um close estupendo no personagem do marido que (aparentemente) tenta convencer a mulher morta da impossibilidade de atender seu pedido. A música sobe. Corta para um velório. Todos os atores e atrizes estão de óculos escuros. São servidos salgadinhos. Executivos de terno tilintam copos de uísque, mulheres de longo negro comparam seus vestidos, crianças correm, se escondem debaixo das mesas e são recriminadas pelos pais. Há conversas desconexas sobre a morte de alguém. O relógio marca a meia-noite. O tempo entra em flagrante descompasso e o pacto é quebrado, pois (após dois segmentos e dois intervalos para anúncios) são apenas nove e meia, no máximo, nove e quarenta, e toda telenovela daquela emissora é sempre apresentada no mesmo tempo em que o tempo acontece. Isso é um dogma, uma prerrogativa clássica, como nos postulados científicos. O choque traz uma opção dramatúrgica que não estava no cardápio.

 

Depois do último intervalo e seus respectivos anúncios, a vinheta entra no ar. Ouve-se outro trinado em OFF/corte para o interior da mansão. O personagem do marido atende: é a mulher morta que quer falar com seu marido. Dessa vez, no entanto, ele reconhece a sua voz imediatamente, fala com ternura, o afeto é flagrante; de sua boca, brotam palavras dóceis, meigas, lembram de fatos e episódios, trocam intimidades. Sua mulher morta está viva em outro tempo e em outro lugar e isso o deixa momentaneamente feliz.

 

Daquele dia em diante, haverá sempre a possibilidade de esperar um novo telefonema. A música vai baixando pouco a pouco, até sumir por completo. Enquanto descem os créditos, há um estupendo close numa enorme lua cheia que tangencia o mar no horizonte. Ela é lambida quase amorosamente pelas ondas.

 

Desta forma, reciclada pela assimetria, a telenovela acaba.

 

Furio Lonza

Escritor e dramaturgo

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Pensilvânia- EUA

 

agosto 2021