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O ESTRANHO MUNDO DOS ROTEIRISTAS

[acertos, equívocos & curiosidades]

 

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Uma das questões mais polêmicas referentes ao cinema são as adaptações feitas a partir de livros. Vaidosos por natureza, os autores de romances e contos odiaram a nova invenção, que consideraram apenas como uma recreação menor diante de seus calhamaços recheados de metonímias e hipérboles. Quando perceberam o montante de grana que rolava, quiseram entrar nessa boquinha. Ao tentarem se enquadrar no esquema, no entanto, a maioria se deu mal. William Faulkner patinou feio, Scott Fitzgerald não emplacou nenhum roteiro que prestasse e Raymond Chandler conseguiu alguns bicos que resultaram em enredos sem muito brilho.

 

A bola acabou caindo nas mãos dos roteiristas, uma classe anfíbia de trabalhadores da palavra que surgiu timidamente, mas que se solidificou ao longo das primeiras quatro décadas do cinema. Eram metódicos, pragmáticos e tinham muitas ideias na cabeça. Agarraram a oportunidade com unhas & dentes e não largaram mais. Mas não se submeteram completamente ao sistema. Pelo contrário: seu sindicato era dos mais fortes. No meio do caminho, houve uma greve que paralisou tudo e botou os magnatas de Hollywood contra a parede.

 

Tudo começou quando os produtores das grandes companhias tiveram a ideia de dar um banho de erudição nessa nova modalidade de entretenimento. Pegaram os best sellers da moda para transformá-los em filmes. Surgiram clássicos do cinema como E o Vento Levou, As Vinhas da Ira, Como era Verde o meu Vale, O Sol é para Todos e O Falcão Maltês, adaptados respectivamente por Sidney Howard, Nunnally Johnson, Philip Dunne, Horton Foote e John Huston.

 

Seja por motivos emocionais (o tema lhe é tão caro que turva seu bom senso) ou estilísticos (que ele preza tanto) ou até estruturais (disso, ele não abre mão), nem todo escritor é rígido em relação a um desenvolvimento clássico da narrativa. Tergiversam, abrem enormes lacunas para recorrentes elucubrações nostálgicas, dão-se ao luxo de descrever febrilmente as fachadas de casas ou as características dos personagens ou mesmo a situação político-econômica que serve de base para o desenvolvimento da trama e nem todos conseguem driblar o melodrama.

 

Salvo engano, a isso se chama estilo e estamos conversados.

A rigor, portanto, a primeira atitude de um roteirista ao receber a incumbência de adaptar um romance para o cinema ou para a TV é o de avaliar o que deve entrar e o que deve sair, evidentemente. Ou seja: cortar as gordurinhas que cabem num livro, mas grosso modo são dispensáveis num filme ou minissérie.

Para saber o que é supérfluo, contudo, é necessário identificar o que é essencial.

E o essencial é subjetivo, talvez invisível aos olhos ou à intuição, provavelmente está nas entrelinhas ou numa metáfora escondida no meio da fala de um personagem secundário. É possível que nem o próprio autor do livro saiba onde ele esteja.

 

Lá se vão os tempos em que a galera mais petulante afirmava que tinha gostado mais do livro. A maior parte dos filmes de Stanley Kubrick, por exemplo, dá de dez a zero nos livros que dirigiu para o cinema. Ou Robert Altman. Ou Hitchcock num passado recente. Três artistas que assinaram suas obras sem dar muita atenção ao original; simplesmente sentaram-se com os roteiristas, distribuíram tarefas e estipularam protocolos de conduta. E nenhum deles foi acusado de deturpar as obras literárias nas quais se basearam.

 

Pelo contrário: melhoraram-nas.

 

Perceberam que os romances tinham um potencial grande de serem transformados num filme por motivos vários, mas não literalmente.

 

Partindo do pressuposto de que literatura e cinema são dois gêneros distintos, uma adaptação deve ter uma margem para que o roteirista e o diretor possam assinar suas participações de acordo com suas próprias convicções artísticas e estéticas, e sempre guardando um benéfico distanciamento que agrega à obra novas concepções e veredas que ampliam seu significado.

 

Essas seriam as condições ideais. Na prática, contudo, isso ocorre raras vezes.

 

O produtor se mete, o roteirista é pressionado a seguir cláusulas impostas pelo contrato e o autor do livro insiste na fidelidade ao original, não admitindo atalhos, fusões ou interpolações que possam desconfigurar o que tem em mente.

 

No entanto, se tudo que está no livro for colocado ipsis litteris, essa margem para a imaginação diminui sensivelmente, o que pode comprometer o lado criativo, pois essa extrema fidelidade ao original manieta o conteúdo numa camisa de força.

 

Se Kubrick tivesse seguido o romance de Stephen King ao pé da letra, O Iluminado não teria se tornado uma obra-prima, seria apenas e tão-somente um thriller de terror barato, embora a roteirista Diane Johnson tenha contribuído bastante.

 

Se Alfred Hitchcock tivesse filmado o conto Janela Indiscreta, de Cornell Woolrich, de forma negligente ou burocrática, o filme não seria considerado hoje um clássico do suspense, mas apenas a crônica de um assassinato visto pelas lentes de um voyeur bizarro. Para isso, contou com a inestimável parceria do roteirista John Michael Hayes.

 

Quais seriam então essas condições ideais? O exemplo mais significativo é o filme Short Cuts, de Robert Altman, baseado em vários contos curtos de Raymond Carver.

Tudo começou com a viúva do autor, Tess Gallagher, que, depois de muito pensar e avaliar as possibilidades de escolha, fixou-se no diretor, dando-lhe toda liberdade de trabalho.

 

Diz a lenda que Altman pegou um avião, leu os cinco livros de Carver numa tacada só e dormiu. Quando acordou, tinha tudo na cabeça. Quais os textos que utilizaria, como abordá-los, qual a sequência ideal para seu propósito e os links entre um e outro. Mas não fez isso tudo sozinho: chamou o roteirista Frank Barhydt, que foi fundamental para assessorá-lo nessa empreitada. E jamais saberemos onde termina o trabalho de um e começa o do outro.

 

Altman tomou liberdades: todos começariam ao mesmo tempo e se alternariam, com cortes específicos (short cuts) para que o resultado fosse satisfatório, e o melhor de tudo: como havia algumas lacunas, preencheu-as com vinhetas de sua autoria, mas sempre seguindo o estilo enxuto e conciso do escritor. Só por curiosidade, a cena de Jack Lemon no hospital interpretando o pai do homem que espera (em vão) a recuperação do filho que foi atropelado não está em nenhum dos contos de Carver.

 

No Brasil, não é diferente, mas cada caso é um caso.

Jorge Amado se deu bem no cinema: Dona Flor, Tenda dos Milagres e Gabriela são pérolas do cinema nacional. Foram adaptados com rigor e retrataram o essencial com muita sensibilidade. Já Antônio Callado e Euclides da Cunha se deram mal. Quarup e A Guerra de Canudos são um lixo.

 

Talvez o romance adaptado para o cinema com mais sensatez, inteligência e jogo de cintura tenha sido Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, com direção soberba de Hermano Penna e uma interpretação sublime de Lima Duarte, segundado com méritos indiscutíveis por Orlando Vieira.

Por que sensatez? Porque os roteiristas Flávio Porto, João Ubaldo Ribeiro e o próprio diretor conseguiram separar com maestria o que é literatura do que é cinema. Por que inteligência? Porque souberam recriar o clima opressivo e ambíguo do livro mais através de silêncios estrategicamente colocados na narrativa do que pelos diálogos. Por que jogo de cintura? Porque, acima de tudo, foram capazes de substituir o fluxo de consciência que permeia quase todo o romance pelo ritmo nervoso das cenas, sem abrir mão das falas entrecortadas dos personagens em situações-limite. Isso é cinema.

Sargento Getúlio centra-se num dilema clássico da tragédia grega: a honra versus as circunstâncias de momento. Nesse sentido, as elucubrações finais do protagonista agregam à trama o monólogo de uma

Antígona do sertão tentando levar a cabo sua incumbência custe o que custar. A reviravolta política não consegue demovê-lo de sua função precípua e resolve descumprir as contraordens recebidas no meio do caminho pelas autoridades porque tem um compromisso com a própria consciência.

 

Dos primórdios do cinema até hoje, muita coisa mudou e a genialidade dos roteiristas só aumentou.

 

Formam uma classe coesa e independente, assinam suas obras, são famosos, produzem e alguns até dirigem seus próprios projetos. Adaptando romances ou produzindo roteiros originais, gente como Dalton Trumbo (Spartacus), Herman Mankiewicz (Cidadão Kane), I. A. L. Diamond (Quanto Mais Quente Melhor, Irma La Douce), David Mamet (O Sucesso a Qualquer Preço), Joel & Ethan Coen (Fargo) e Robert Towne (Chinatown) não deveriam ganhar apenas o Oscar, mas também o Nobel de literatura.

 

O mais curioso disso tudo é o seguinte: os melhores roteiristas de cinema nunca tiveram a pretensão de escrever e publicar romances. E talvez sejam tão eficientes justamente por causa disso.

Furio Lonza

escritor e dramaturgo

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Foto Printerest

Stanley Kubrick no set de Uma Odisseia no Espaço-2001

 

Rio de Janeiro

novembro 2021