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DESTÁ!

Penso em Ariano Suassuna. Imagino – da minha própria e permissiva imaginação – que era assim que ele ouvia e traduzia a canção dos Beatles (a quem ele, certamente, se referia como “aqueles meninos, os besouros”), Let it Be. Destá. Porque eu cresci com essa sonora expressão nordestina aos ouvidos. E ela sempre fez sentido, sem carecer de explicação. É regionalismo, mas é universal. Deduzo. Pois, hoje acordei com ganas de reflexão. Peripatético tardio, dei voltas e voltas em torno da mesa, na sala de jantar. Destá que o pensamento ia longe. E voltava. E ia. E voltava. Sem que eu conseguisse concluir a linha de raciocínio. Pensei no oxigênio consumido. Em fórmula de cápsulas. Pensei, vão desejo, que elas – as cápsulas – se bastariam por um tempo limitado. Que tudo ganharia um tom de normalidade. Que nada iria além de um hiato da história. Um brevíssimo lapso de tempo. Mas, não. Vejo-me aqui, em torno da mesa, Aristóteles de mim mesmo, a duvidar do que enxergo, do que percebo, do que vivo. Destá! Ainda não é pra agora. Mas vai passar. Enquanto isso, sigo compartilhando minha dose diária de oxigênio nessas manhãs turvas. Respiro aliviado. E me alimento da capacidade de alívio estendido, amplificado. Pra mim e pra quem minhas cápsulas, por ventura, alcançarem.

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AO MEU REDOR

Minha irmã posta uma foto. Tem ao colo uma gata negra. E tem a serenidade de uma mãe vigorosa, destemida e terna. Ternura extraída sabe-se lá de onde. Sabe-se se lá com que esforço. O que sei, mesmo, é da grandiosidade que a imagem traduz. E me transborda o desejo de dizer-lhe o quanto a amo.


 

CHUVA

O tempo fechado impede que eu veja, da minha janela, os aviões que chegam e saem. Tem sido assim, nos últimos dias. As mesmas nuvens que mascaram de cinza a linha do horizonte à minha frente guardam, em si, segredos de mudança. Quem haverá de sabê-los? Eis o mistério. Eis a graça da vida. O que parece definitivo, o que se esmera em semear tristeza e dor, pode se desfazer num zás! Por trás das nuvens de chuva há de haver a intensidade de um dia ensolarado. Os algozes que imperam sob o tempo nublado nunca souberam, e nem saberão, lidar com a beleza do sol. A gente não vê, nem percebe. Mas os aviões seguem chegando e saindo por trás das nuvens. A poesia seguirá sendo a vacina que liberta e torna mais leve a alma.

 

Inorbel Maranhão Viegas

jornalista e cronista da coluna Pílulas de Oxigênio

Ano Pandêmico de 2022 

 

 

Brasília – DF 

abril 2022