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ESTORINHA QUASE INFANTIL EXPLICATIVA

EM TEMPOS DE PANDEMIA

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Era uma vez uma cabeçada de duzentos jovens surfistas brasileiros de boa família, que fretou um jato e foi para a Austrália em busca de um novo "pico", secreto e quase inexplorado. Chegando ao local, já com suas pranchas e roupas de neoprene, gritaram "hissa!" e já iam entrando na água, quando surgiu, correndo, um biólogo marinho, bradando, esbaforido: "Não entra, não entra!" O lider, filho de um ex-surfista empreendedor meritocrata da Barra, rebateu na hora: "Coé, brôu, que mané num entra? A gente tá mó tempão trancado em casa no Brasil e, quando chega na parada, fissurado pra curtir o pico, tu vem vuduzar nosso rolê ?! Corta essa!"

 

O biólogo, nervoso, explica pro surfista que ele e uma equipe de cientistas estão monitorando essa praia há quase quatro meses e, todo dia, invariavelmente, os tubarões matam 50 pessoas naquele lugar. O jovem de Bem não curte o papo do biólogo. "Todo dia?!" O biólogo: "Só parou quando a gente interditou a praia. Mas agora tem um militar que não entende nada na chefia e mandou liberar. E aí a média voltou com tudo. 50 por dia. Por isso a gente resolveu dar plantão aqui pra avisar". Aí o surf boy se esforça um pouco e raciocina : "50 por dia? Não tem dia que morre mais nem morre menos?" O biólogo diz que não. Nunca foi 49 nem 51, sempre exatamente 50... "todo santo dia!" Daí o surfista conclui, amarradão e se sentindo sagaz à vera: "Então tá safo. Se, há quatro meses, morre o mesmo numero todo dia, é porque tá estabilizado! Normalizou, galera, todo mundo n'água!"

 

O biólogo, meio agoniado, segura o braço "fechado" de tatoo do fera e tenta ser mais direto: "Compadre, cê não tá entendendo, se entrar na água, 50 vão morrer!" O boy, impaciente, puxa o braço e manda: "Foda-se, véio, nós somos 200!" Vendo que o cara ia se negar a entender, até o fim, o biólogo tenta a última: "Tudo bem, então usa, pelo menos, esse repelente de tubarão aqui que pode ajudar, na hora". O cara, com a grossura convicta dos "merecedores" pátrios, corta a onda: "Repelente é o caralho. Tá querendo me ensinar a cuidar da minha vida agora, mané? Vaza! Vamo nessa, rapêize." A galera grita "Hissa!" de novo e sai remando pro pico na maior animação. O biólogo não tem outra alternativa senão a de ir embora, debaixo da zoação geral da moçada.

 

Na manhã do terceiro dia, bem cedinho, o biólogo volta ao point pra cumprir seu plantão. Cinco minutos depois a cabeçada pinta na área, animadaça, mas em menor número. O biólogo faz as contas e constata que, dos 200, só tinham sobrado 101. Chega logo junto do "brother alfa" da manada. "E aí, meu irmão, entendeu agora o que eu queria dizer? É melhor parar, enquanto é tempo." O cara rebate, já puto: "Qual foi, pela-saco do c... Parar por que, mermão? Que que tá pegando agora?" O biólogo, chocado : "Não tá vendo? Anteontem vocês eram 200 e agora só tem 101 vivos! Morreram 99 em dois dias!" O jovem meritocrata das ondas, parafinando a 6 pés, nem piscou: "Mas tu não disse que morria 50 por dia?" Exatamente. "Então qual é a tua de querer que a gente pare, logo agora que tá diminuindo? VTNC, mané!"

 

Dito isso, prende o strap no tonozelo, grita "hissa!" e cai no mar, amarradaço, seguido pelo resto da manada, todos se sentindo mais imunes que uma foquinha de documentário do National Geographic.

Juca Filho 

Roteirista e otário em confinamento

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Rio de Janeiro

 

agosto 2020