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Duro

 

 

 

Dormir de conchinha não é para todos, mas era para ela. O calor sonolento da entrega lhe parecia sublime, mas ele continuava a se munir de travesseiros, como uma fortaleza. Em um primeiro momento, ela dissimulava jogar os braços por cima das costelas dele, esperando que ele pegasse a deixa. O corpo dele era resoluto de uma maneira pétrea. A ponto que o desejo dela começou a rumar para a tocaia face a uma negativa tão bélica. 

“Não é nada pessoal, é simplesmente assim que esse corpo precisa dormir” ela arranhava esse pensamento na mente com estridência. A racionalização não a compensava por estar privada de tantas interações tácteis suspendidas pela pandemia. Sem abraços fraternos, piscadelas pontuais, danças lúdicas, seu corpo perdia seus contornos.  No mais, esse pequeno gesto carinhoso tinha acontecido tão espontaneamente e de forma desproblemática em seus relacionamentos anteriores, que ela ainda se espantava com a maneira como o corpo dele jazia, como baú trancado na sua cama. Em conversas ele era incisivo e curioso, no sexo, generoso e delicado, mas no sono, severo como poucos. Isso lhe parecia uma perda tolerável, então ela passou a se exilar no lado oposto da cama. A sua cama. 

 

As perguntas incessantes dele valorizavam ela, ele parecia achar tudo merecedor de descobrimento. Ele se obstinava tentando entender a lógica falha dela. Embora produzisse comentários inteligentes, o que ela realmente queria era ser valorizada pela sua improvisação culinária bem-sucedida. Ele se aproveitava da capacidade editorial dela, seu mercantilismo verbal era ágil.  Chegado o principio da quarentena, eles passaram rapidamente a coabitação esporádica por três ou quatro dias seguidos e depois intercalados com longos períodos onde cada um ficava no seu canto. Depois de alguns tantos dias, ele eventualmente anunciava seu retorno para sua casa para que ele pudesse se concentrar no seu trabalho. “Ter seu corpo ao meu alcance me distrai muito.” Um vortex desponta irrompendo coisas a sua volta. Esses corpos se entrelaçavam e se espalhavam enquanto as ambulâncias rangiam lá fora, e as salas de emergência superlotavam. 

 

Nenhum deles havia inventado essa coisa de antepor Eros a Tanatos. Funcionava no sentido de aumentar a resposta imunológica um do outro no mesmo momento em que corpos estufavam sacos pretos em mortuários, e estas imagens se multiplicavam em suas telas. Ele sussurrava comentários sobre a forma curvilínea dela, o calibre de desejo que isso provocava nele, e essas palavras viveram como agulhas que picavam sem brilhar na memória dela.  

 

Os hiatos entre encontros eram costurados por uma correspondência espasmódica. 

“Eu queria me aninhar no seu colo hoje e sentir seu cheiro até reconhecer algo’”

“Mas reconhecer o que?” ele retrucou.

“Não sei, mas eu te aviso quando tiver descoberto.”

Frequentemente nesse diálogo digital havia mal-entendidos, confissões recicladas, músicas e artigos trocados, assim como detalhes tediosos de dramas familiares. 

 

Quando ele voltava ao fim, eles se banqueteavam mutuamente, até que o corpo dele cairia exausto, inabalavelmente lateral, congelado na direção oposta à dela. Uma vez que aquele corpo havia entregado os pontos, ele se tornava surdo ao dela. Por consequência, ela também deixou de ouvir seus anseios, e as manhãs engrossaram na textura emotiva.  Levantar-se de um colchão onde sua ausência não era sentida, ou sua fuga não era aplacada por um braço de soslaio, tudo isso pedia negação. A operação conversa não se aplicava. Seus anseios ficavam ali, de prontidão, sem tirar a mirada dela. 

 

Ir até o píer de bicicleta era uma atividade marcada por ela constantemente se voltando para verificar que ele ainda estava no seu lastro.  O pescoço dela se importava com o paradeiro dele. Essas parcas saidelas eram seguidas de leituras noturnas ou filmes, na falta de qualquer circulação social. Talvez fosse justo esta domesticidade precipitada que causasse o congelamento do corpo dele durante o sono, como se a última instância de demarcação territorial e privacidade ocorresse ali na topografia do colchão. Antes do sono a junção era possível. Uma noite eles se estiraram na cama lendo e acariciando seus antebraços, gerando uma memória física fina como taças de porcelana nos lábios. Ela mal processou um estímulo tão delicado e nostálgico no próprio momento em que ele aconteceu. 

 

O interesse sexual dele se concentrava, previsivelmente, nos peitos dela. Ele era capaz de um investimento atávico, onde a expressão da natureza maternal é plena. Ela deixava essa etapa acontecer pela duração necessária, embora as manobras dele não fossem particularmente competentes ali. Sua dedicação hipnótica a comovia a aceitar seus esforços ineficazes com carinho, assim como o fazem tantas mulheres por não acharem o vocabulário preciso para vaticinar sem diminuir seus pares.

 

No encontro seguinte, ele chegou de bicicleta e foi direto para o chuveiro como era seu ritual pandêmico. Ele a encontrou na sua cadeira de escritório, onde ele a revirou, trouxe sua boca ampla contra a dela, sentou no seu colo com as pernas abertas numa inversão satisfatória, lhe pondo em vista sua ereção, como se ela precisasse de mais evidências. Essa posição invertida era muito do seu agrado, e ela teria permanecido nela longamente com ele femininizado, mas ele logo a trouxe para o seu colo, desperdiçando o lustre transgressor do momento.  Uma vez na cama, eles se encontraram face a face, olho no olho, inescapáveis e irredimidos.  Essa capacidade dele de a penetrar comensuradamente, com a lentidão de um monge, a punha em orbita, de onde ela mal conseguia vislumbrar seu próprio lar. Asteroide de si mesma, levitando, ela se perdia aos poucos, liquefeita em algum cosmos. A servidão prestativa dele talvez não fosse tão dedicada ao prazer dela quanto ao sentimento de potência que ele abraçava em si por se sentir agente de sua catarse.

 

Ela tomou seu rosto em suas mãos, o acariciou com devoção, e um tapa estalado irrompeu de sua mão direita. Os olhos dele estatelados, sua voz trêmula e hiperalerta, tudo nele parecia gritar “Mas o que eu fiz pra merecer isso?”

 

Anestesiada por sua própria ação involuntária, a compreensão a escapava.

Mas não ao seu corpo. Seu corpo era capaz.

Karen Sztajnberg

Filmaker

Knot films

Nova Iorque

 

agosto 2020