território livre  |  desde 2020

 

RELATO DE UMA CONDUÇÃO COERCITIVA:

O LAVAJATISMO E A PRODUÇÃO DE RÉUS

 

Eram 6 horas da manhã do dia 13 de dezembro de 2016 quando bateram na nossa porta. Eu já estava acordada com os gêmeos desde 4:00 da manhã, na época, eles tinham 8 meses. Por um instante pensei que deveria ser algum vizinho bêbado que errou de porta. Mas as batidas continuaram e eu resolvi perguntar quem era. Era a polícia, a Polícia Federal. Abri (pensando que poderiam ser ladrões fantasiados de polícia).

 

Mas era a polícia mesmo. Eles procuravam pelo meu marido Paulo. Motivo: uma investigação sobre o Museu do Trabalho e do Trabalhador em São Bernardo do Campo. O “Museu do Lula”, como ficou conhecido após sistemática campanha de desprestígio da grande imprensa, era um projeto museológico conduzido pela prefeitura de São Bernardo do Campo, na gestão do prefeito petista Luiz Marinho. Meu marido, Paulo Fontes, historiador, na época, professor da FGV-Rio, é especialista em história do trabalho, com uma sólida carreira acadêmica.

Ele atuou no projeto como coordenador de uma equipe de pesquisa de conteúdo histórico-museográfico. Acordei Paulo e dez minutos depois ele já estava saindo de casa escoltado pelos policiais. Me informaram que ele não estava sendo preso e que iria prestar depoimento. Na hora não me ocorreu perguntar para onde o estavam levando. Fechei a porta e me vi ali, sozinha com os gêmeos.

 

Liguei imediatamente para alguns amigos. Com a ajuda deles, conseguimos o contato de um advogado de Direitos Humanos do deputado Wadih Damous (PT-Rio). Ele se dispôs a acompanhar o Paulo no depoimento. Não me esqueço, não esquecerei. Do Departamento de História da PUC-Rio recebi apoio imediato com a possibilidade de acionar os especialistas na área de Direitos Humanos. Um casal de amigos foi para minha casa e me ajudou a cuidar dos meninos. Lá pelas 11 horas da manhã descobrimos que Paulo era parte de um inquérito como réu. À tarde ele retornou. Estava calmo, mas muito abalado. Contou-me que no depoimento a primeira pergunta feita foi: você conhece o Lula? E o próprio policial carioca que estava apenas aplicando as perguntas feitas pelo Ministério Público de São Bernardo do Campo disse: "eles sempre fazem essa pergunta!". Na TV os noticiários divulgavam freneticamente a grande operação do MP, que estava desde o fim da madrugada realizando as conduções coercitivas em todos os cantos do país para investigar um escandaloso caso de corrupção no "Museu do Lula". Era só mais um dia de pirotecnia midiática. Os telespectadores já estavam acostumados a assistir no noticiário noturno imagens de esgotos transbordando cédulas de dinheiro e, na sequência, políticos e empresários saindo de suas casas ainda descabelados escoltados por policiais que mais pareciam artistas de uma Hollywood canhestra filmada na distante Bruzundanga. Mas na noite de 13 de dezembro de 2016 o "furo" de reportagem envolvia o meu marido. Temi que a foto de Paulo aparecesse na televisão. Descobrimos que se tratava de uma investigação que estava em andamento desde 2014. Nos aconselharam a não falar nos telefones e quando fossemos falar do caso era para guardar os celulares no micro-ondas. Teoria da conspiração? Paranoia? Achamos prudente acatar. Horas depois soubemos que alguns funcionários da prefeitura de São Bernardo e também os proprietários da Brasil Arquitetura, escritório responsável pelo projeto arquitetônico da construção da sede do futuro museu, haviam sido presos temporariamente (as prisões foram renovadas e eles ficaram presos por um mês, de modo a evitar que eles pudessem angariar provas a favor de sua inocência. E não é para isso que serve a prisão temporária?). Havia uma visita marcada para o fim da tarde e tudo o que não queria naquele momento era receber alguém. Mas ele já estava a caminho. Era um antigo amigo do Paulo, de longa trajetória de militância política. Rapidamente ele percebeu o clima, desabafamos e ele nos acalmou trazendo uma luz que eu não sei explicar. Se eu não fosse ateia, diria que ele foi um anjo. Depois recebemos outro amigo querido, nos sentimos amparados. Estávamos preocupados com Hélio da Costa, também acusado, nosso amigo e colega no projeto museológico. Hélio estava voltando da Alemanha (se não me engano) e nós tínhamos medo que dessem ele por fugitivo. Mas como alguém poderia ser acusado de fugitivo se a pessoa nem sabia que era investigada? Nos disseram que após a Operação Lava-Jato tudo era possível. No outro dia, Paulo foi ao escritório do advogado que o havia acompanhado na manhã do dia anterior. Quando foi tirar o dinheiro no caixa eletrônico, descobriu que o MP havia determinado o bloqueio da sua conta salário. Uma professora, sua colega de trabalho e amiga pessoal, imediatamente lhe emprestou mil reais. Não me esqueço, não esquecerei.

 

Nos dias seguintes, seguimos angustiados, arrasados, tentando manter alguma normalidade para não afetar os meninos. Tivemos acesso ao inquérito e tal foi nosso espanto quando soubemos que Paulo encabeçava a denúncia acusado de ter concebido o projeto do museu a mando de Lula, de modo que o museu fosse apenas uma fachada para exercer a corrupção. Era tão risível, mas era sério. Sentia vergonha dos vizinhos (embora achasse que ninguém havia visto a PF em casa naquele horário da manhã). Eu queria gritar pro mundo que meu marido estava sofrendo uma grande injustiça e para uma certa esquerda que vibrava acanhada com o tal justiceiro de Curitiba eu queria dizer que eles não estavam entendendo nada!

 

Mas os advogados pediram discrição, não queriam transformar o caso em uma campanha política. Nas primeiras semanas, a angústia era para resolver o caso logo. Outra amiga muito querida e ex-presa política, abriu a sua casa para que pudéssemos receber os amigxs mais próximos e explicar o caso. Foi a primeira vez que Paulo se emocionou. Acho que, finalmente, ao narrar o caso diante das pessoas, ele se entendeu como vítima. Dizem que é normal as pessoas acusadas de forma injusta se sentirem culpadas mesmo sem saber o porquê. Não me esqueço, não esquecerei. Resolvemos contratar um escritório de advocacia em São Paulo altamente especializado na área, era só o início dos gastos financeiros. Na primeira fase, os advogados utilizaram a estratégia da colaboração. Paulo, então, em uma sessão com a procuradora, levou a ela centenas de documentos que comprovavam a feitura da pesquisa, realizada em várias etapas do projeto. Contrariando, assim, a acusação de que o trabalho de consultoria histórica não havia sido feito. Além disso, abriu a ela seu sigilo bancário, mostrando que não havia nenhuma quantia que pudesse ser considerada suspeita para um suposto crime de corrupção. Ao contrário, o que Paulo havia ganho como remuneração pelo trabalho realizado em dois anos e meio em um projeto daquela envergadura não chegava a três meses de salário da própria procuradora. Mas a colaboração de Paulo não era interessante, ele não tinha nada nem ninguém para delatar. Então ele se tornou réu no processo. Mas, desta vez, Paulo figurava como um mero acusado de ter se beneficiado por crime de peculato, ainda que não fosse funcionário público na época. Foi então que entendemos que a estratégia do MP era fazer com que o suspeito apresentasse “evidências” e “provas” uma vez que os documentos apresentados por Paulo à procuradora serviram de subsídios para que ela produzisse uma nova narrativa processual, agora menos midiática, restrita ao âmbito da prefeitura e sem Lula como mandante. Primeiro faz-se a acusação e a intimidação forçando o acusado a fornecer elementos de uma investigação que não foi feita anteriormente.

 

Não vou entrar em detalhes sobre o processo, os custos, o modus operandi do MP, etc. Só queria lembrar do dia 13 de dezembro de 2016, 48 anos depois do AI-5. Era impossível não reavivar em minha mente os testemunhos diversos que como historiadora do regime militar ouvi dos ex-presos políticos e familiares de mortos da ditadura, pensar nas suas experiências de prisão e de tortura e dimensionar o quanto foi e é incalculável o estrago em suas vidas. Claro que o que vivemos não se assemelha ao vivido pelas vítimas da repressão. Ao mesmo tempo em que era também impossível não ver as semelhanças, as conexões, não pensar no legado do autoritarismo travestido em uma nova fachada de democracia e embalado por novos ritmos nacionalistas. Os meses foram passando e a gente entendeu que "ser réu" não era coisa temporária, deveríamos nos acostumar com a nova identidade. E assim foi. Hoje, 4 anos, 1 mês e 24 dias depois, Paulo foi ABSOLVIDO, assim como toda a equipe de historiadores do trabalho que atuaram no projeto, e o ex-prefeito Luiz Marinho. Outros seis foram condenados por crime de peculato. Agradeço a todos os amigos e familiares que nos apoiaram e continuam presentes em nossas vidas hoje. Não esqueço, jamais esquecerei. Pela condução coercitiva e as contas bloqueadas, lutaremos por reparação.

Larissa R. Corrêa

Professora do Departamento de História da PUC-Rio,

mãe do Leon e do Miguel, esposa de Paulo Fontes

 

Arte Wesley Duke Lee

 

Rio de Janeiro

março 2021