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Os Demônios

 

 

 

 

Hoje o medo. Para mim, tudo começou em 1970, quando uma contaminação viral tomou o Brasil. Todos os demônios abandonaram a espreita. O medo. Nasceu um bebê diabo numa maternidade em São Paulo, foi fotografado, pediram autógrafo, criaram fã clube, apareceu no programa do Flávio Cavalcanti*, e até pegou um táxi para o inferno, lugar onde não iríamos mesmo que quiséssemos. Depois de espalhar a discórdia, instigar o pânico, voltou pra casa, seu confinamento divino. O medo tornou-se a maldição, era tempo dos malditos, dos condenados, da inquietação controlada, e os olhos azuis do General Presidente** nos abandonaram, nada disseram sobre o vermelho do Diabo.

 

No programa do Flávio Cavalcanti, a moça com o corpo colado ao pedestal do microfone permanecia estática, como se tivesse sido aparafusada junto com o pedestal. Os olhos estavam vendedos mas o olhar tentava escapar pelas frestas da venda, desesperado procurando o infinito e esbarrando no nada. Ela não se movia, falava com uma voz mole, grudenta, uma lesma saindo dos lábios, contava sobre o traficante que tinha tirado o fumo do seu cigarro e colocado maconha no lugar, se viciara, desenganada e escrava dos traficantes. Cuidado: cigarro causa dependência, boca seca, apetite voraz, alucinações e pode curar o glaucoma.

 

Medo.

 

Onde estava o Mariel Mariscot***, o policial exemplar que combatia o tráfico e os ladrões, para nos proteger? E o General de olhos azuis iluminando a Amazônia, onde? Demônios por todos os lados. Num lugar no interior dos interiores, um menino girava cento e oitenta graus sobre os calcanhares, tentando surpreender o diabo que estava às suas costas desde que ele fora visto num convento perto de sua casa. O Anjo Caído tombara por ali, o bebê diabo e os traficantes estavam na televisão. Agora era consigo, com seus demônios. Nunca conseguiu surpreender o Cramulhão, encará-lo de frente, quem sabe tocá-lo em flagrante e gozar a satisfação de vê-lo despreparado, sem ação, rendido, supreendido por uma criança de nove anos.

 

Naquela época os anjos e os demônios estavam sempre às nossas costas, mas o anjo já tinha ido embora, havia saído das costas do pequeno corpo franzino, e a Besta tomara conta solitária. O garoto perdido a girar, tentando surpreender o mundo em seu mal e seu bem, na ilusão de controlar um pedaço, ao menos, do mal e do universo; o medo. Fracassou.

 

 

 

 

*N.T.N.G: (nota da tradução para novas gerações): clique no Google: Flávio Cavalcanti.

**N.T.N.G: escreva no Google: “sangue na coca-cola olhos azuis” e você saberá.

*** N.T.N.G: agora já sabes o que fazer.

 

 

 

 

Gil Rodrigues

Roteirista e jornalista

Rio de Janeiro

 

 

Arte

Daniel Cerejo

Portugal

 

Abril 2020