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NO MURO DO APARTHEID,

A CULTURA DA RESISTÊNCIA PALESTINA

Soraya Misleh

 

WAILING WALL

Osvaldo carvalho

 

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Mukawama (palavra árabe que significa resistência) é mais do que parte do vocabulário palestino. É a garantia de sua existência ante limpeza étnica planejada para a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 – para os palestinos, a Nakba (catástrofe). São mais de 72 anos de contínua e agressiva colonização, expulsão, refúgio, massacres, sangue, dor e lágrimas. Mas também de luta contra ser apagados do mapa, pela identidade, pelo retorno, pelo fim da ocupação, pela derrota do projeto político colonial sionista.

A resistência se dá sob todas as formas. No cotidiano, na Palestina ocupada, ir ao trabalho, à escola, ao hospital, cultivar a terra e replantar quando oliveiras são brutalmente arrancadas é resistir, ante o apartheid. Assim como as greves de fome de presos políticos, reconstruir a casa demolida por Israel dezenas de vezes, recusar-se a deixar sua terra, manter a memória e contar as histórias dos pais e avós na diáspora, preservar a identidade no refúgio. Transmitir esse pertencimento e resistência de geração para geração.

Na arte, na literatura, em todos os setores da vida palestina, respira-se resistência. Os grafites no muro do apartheid na Cisjordânia, Palestina ocupada, são reflexo disso. Iniciada em 2002, a barreira é parte do aparato de colonização e segregação sionista em violação aos direitos humanos fundamentais de palestinos. Ainda em construção, a despeito de a Corte Internacional de Justiça ter determinado sua derrubada há 16 anos, conta 700km de comprimento e nove metros de altura. Serpenteia a Palestina, divide famílias ao meio e anexa cada vez mais terras férteis. 

Quem chega à Cisjordânia se surpreende com a imponência da ocupação expressa pelo muro do apartheid – além de inúmeros postos de controle e assentamentos sionistas. Mas também enxerga a resistência, persistente e sem tréguas, no simbolismo dos grafites. Artistas ao redor do mundo também têm expressado solidariedade e deixado sua marca em instalações dentro e fora da Palestina. Banksy é um deles, admirado e respeitado por palestinos. 

Em Gaza, demonstraram sua gratidão ao artista na areia da praia. Muitos outros reconhecem o muito que Banksy têm contribuído com a causa, sobretudo por ter se colocado em risco ao desenhar no muro. Assim como outros artistas desconhecidos e visitantes.

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O simbolismo dos grafites

Entre imagens de presos políticos palestinos que denunciam essa situação e reivindicam sua libertação – como do líder Marwan Barghouti e, mais recentemente, Ahed Tamimi –, bem como de lutadoras históricas palestinas, como Leila Khaled, há murais que expressam a resistência de forma bastante simples, até inocente: balões que erguem uma menina palestina para além do muro, janelas abertas na barreira que apontam horizonte de libertação. 

 

Também se vê um mural que reproduz pintura famosa de 1830 do romancista francês Eugène Delacroix, intitulada “A liberdade guiando o povo” – o qual foi utilizado ainda nos muros em Gaza. Uma analogia com a revolução francesa, cujos lemas eram igualdade, liberdade e fraternidade.

O sarcasmo e ironia como parte da resistência à ocupação estão, além disso, presentes no muro do apartheid. Exemplo é o grafite feito por um palestino que utiliza o pseudônimo de “Issa”, com a inscrição “Faça homus, não muros”. Pode simbolizar a resistência também à usurpação da cultura palestina que se manifesta inclusive na gastronomia. A pintura tornou-se tema no hotel-instalação de Banksy na Palestina ocupada.

 

Essa forma de expressão, bem humorada e ácida, não é novidade entre os palestinos. Um exemplo é a obra do cartunista palestino Naji al-Ali, criador do personagem Handala – o menino refugiado que o artista retratou sempre de costas, olhando para a Palestina, o qual só se viraria e mostraria o rosto quando a liberdade fosse alcançada. 

Naji Al-ali nasceu em 1937 no norte da Palestina. Juntamente com sua família, aos dez anos de idade, tornou-se refugiado na Nakba. Seus cartoons denunciavam os inimigos da causa palestina – apontados pelo revolucionário palestino marxista Ghasan Kanafani, que cunhou o termo literatura de resistência (adab al mukawama, em árabe): o imperialismo/sionismo, os regimes árabes e a elite árabe/palestina. 

 

Handala tornou-se um símbolo da resistência e também pode ser visto no muro do apartheid, assim como à entrada das casas e dos campos de refugiados, na Palestina ocupada e nos países árabes ao redor. Naji al-Ali foi assassinado por Israel em Londres no ano de 1987. Kanafani, também sobrevivente da Nakba, foi morto em Beirute, 15 anos antes. A arte de ambos segue eternizada, a inspirar a resistência. Nas barreiras, paredes e memória coletiva.

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Arte contra a colonização

Numa situação em que a expansão colonial e apartheid sionistas se aprofundam e o mundo mantém sua cumplicidade, com acordos criminosos com Israel, o sentimento de abandono pelos palestinos tem levado a percepções contraditórias na sociedade palestina em relação a grafites de estrangeiros.

 

Por um lado, gratidão – como no caso de Banksy e muitos. Por outro, desconfiança em relação a certas intervenções artísticas estrangeiras e mesmo temor de que o muro se torne uma plataforma. Uma das críticas é que há artistas que popularizam sua arte através da opressão e humilhação diárias enfrentadas pelos palestinos, como se fosse um negócio. Também há o ressentimento próprio do oprimido, por ver que o mundo ignora o que diz e somente dá alguma atenção quando são outras vozes a se levantarem. Compreensível e fato. 

 

Não se trata de reconhecer ou não a solidariedade internacional e, nesse sentido, a contribuição fundamental da arte, bem-vinda, necessária e urgente. Mas de apreender o sentimento e demandas de quem vive sob apartheid. Colocar-se como aliado em sua luta e resistência, não como aquele que busca salvá-lo, apresentando soluções sem ouvir o que estão dizendo, que flertam com a colonização. 

 

Aqui uma observação, para além dos grafites solidários. Atender ao chamado por boicote cultural a Israel vai na direção de se somar, enquanto aqueles artistas que insistem em cruzar esse piquete e se apresentar a convite do ocupante vão no sentido oposto. Mesmo que imaginem estar enviando uma mensagem contra o apartheid, estão ignorando o que os palestinos pedem como solidariedade internacional. E se tornando cúmplices do artwashing (lavar de arte) israelense – que visa dar aparência de normalidade e democracia para encobrir seus crimes contra a humanidade. Que, ao contrário, a arte livre e independente fortaleça a resistência heroica e histórica palestina. Rumo ao fim da colonização, ocupação e apartheid sionistas e retorno do milhões de refugiados às suas terras. A um mundo sem muros. 

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Soraya Misleh

Jornalista e autora do livro AL NAKBA

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Osvaldo Carvalho

Artista Visual 

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nov 2020