CANTOS DE TRABALHO
“ A poesia que se liga à atividade do homem como estimulante e como sedativo do esforço muscular é representada pelos chamados Cantos de Ofício”. Segismundo Spina, Na Madrugada das Formas Poéticas.
Os cantos de trabalho provavelmente tenham surgido das primeiras organizações rítmicas experimentadas pelo homem, vindas a partir dos fazeres ligados à sobrevivência, como raspar uma pedra na outra, quebrar um coco, lascar a madeira. Esses movimentos mantêm sua repetição, sugerindo uma sequência rítmica regular e que, unindo-se à modulação da voz, aos sons produzidos entre uma respiração e outra, foram, talvez, dando origem a essa tradição e possivelmente até à música.
O costume de cantar durante a lida esteve fortemente presente nas civilizações antigas, acompanhando inúmeras atividades coletivas e individuais. No antigo Egito, acreditava-se no canto, como protetor das colheitas e dos animais. Na Grécia, existiam cantos específicos para a moendas, para a tecelagem, cantos ligados à terra e às divindades agrárias. Pelo oriente, os cantos acompanhavam os trabalhadores nas plantações de arroz e assim vai.
Atualmente, podemos encontrar a presença forte desses cantos nas comunidades tribais, onde a música perpassa a vida em todos os seus rituais e também em comunidades rurais, onde os homens ainda se unem em mutirão para realizar determinadas tarefas, muitas vezes por não terem acesso à tecnologia necessária, mas também como um ato de resistência cultural.
Soube da existência dos cantos de trabalho no Brasil quando cursava bacharelado em canto lírico. Em crise com a busca vocal que cada vez mais me impedia de alcançar prazer naquilo que eu fazia, passei a querer interpretar canções onde a poesia e a música fizessem mais sentido para mim e encontrassem assim ressonância na minha voz. Decidi então experimentar um repertório inspirado nas músicas de tradição popular e nesta procura me deparei com o nosso múltiplo e espetacular Mario de Andrade e os seus inúmeros registros musicais feitos pelos interiores do Brasil.
Lembro-me quando abri um de seus livros: ”As melodias do Boi e outras peças” e havia um capítulo com o título “Cantos de Trabalho”. Parei ali. Foi como se tivesse encontrado um grande e antigo amor, um amor eterno. A primeira partitura era “o canto dos carregadores de piano”, (atribui-se à cantiga o papel de não desafinar o piano durante o transporte, um meio de ritmar o passo dos carregadores). As próximas partituras traziam o canto de padeiros, cantigas de engenho e cantos de carregar pedra. Senti que seria um caminho sem volta. E assim foi.
No mesmo período, como que para carimbar o passaporte para esse novo universo, fui convidada para integrar o Madrigal Pshichopharmacon, concebido pelo maestro Álvaro Carlini. Grupo vocal formado para interpretar o repertório registrado por Mário de Andrade e equipe na missão de pesquisas folclóricas, que viajou pelo Brasil registrando inúmeras manifestações populares em 1938. Esta experiência foi um mergulho profundo na alma brasileira. Interpretar aquelas cantigas me fez querer conhecer mais sobre a dimensão mágica da música de tradição oral brasileira que agrega com força elementos da cultura africana, da cultura europeia e de inúmeras etnias indígenas já presentes nas nossas terras.
A partir daí, fui me envolvendo cada vez mais com trabalhos ligados às tradições populares, participando de grupos e estudos. Quando percebi já estava iniciando uma pesquisa própria, ainda que informal e debruçada em outros pesquisadores. O interesse pelos cantos e festas e rituais só aumentava. Chegou o momento em que comecei a viajar pelo Brasil, com meu gravador e caderninho, para conhecer tudo isso de perto. Fui morar no Nordeste, passei alguns anos trabalhando em Recife e neste período conheci mestres e mestras, fazendo visitas e entrevistas e assim aprendendo inúmeras cantigas, histórias de vida e me apaixonando cada vez mais por essas pessoas, guardiãs de tantas sabedoria e beleza.
Passei a ter um interesse maior em conhecer as vozes femininas dentro das tradições. Acabei chegando na comunidade de Vila Fernandes no Agreste Alagoano, quando soube da existência de um grupo feminino ainda ativo, que havia cantado durante muitos anos trabalhando: as Destaladeiras de Fumo de Arapiraca. Era o meu primeiro encontro com os cantos de trabalho. Fui com o coração acelerado. Mal podia acreditar que era real, que eu iria encontrar de perto, ao vivo, aquele grande amor.
Cheguei na pequena comunidade de Vila Fernandes, zona rural de Arapiraca, região do cultivo do fumo. Pequenas casas coloridas espalhadas em algumas ruas de terra onde viviam algo como 3.000 habitantes, todos parentes entre si. No final da rua principal, dentro de um salão pouco iluminado, me esperavam, prontas para cantar e trabalhar, as Mulheres de Arapiraca. Eram nove: Dona Rosália Gomes dos Santos, Maria do Socorro Porfírio, Maria Oliva da Conceição, Isabel Porfírio da Silva, Rosinalva Gonçalves Farias dos Santos, Josefa Correa de Lima Santos, Iraci Pereira dos Santos, Maria Pereira dos Santos e Gilza de Oliveira Santos. Cada uma trazia nas mãos um punhado de fumo e uma pequena faca para tirar o talo da folha e me mostrar como era o trabalho que fizeram por muitos anos cantando.
Começaram a cantar as melodias mais lindas do mundo, já abrindo vozes nos refrões, que desenhavam caminhos vocais muito elaborados, de uma beleza infinita e de uma força ancestral. Estavam lá as nossas artistas camponesas, cantoras/poetas improvisadoras de versos, mulheres até então invisíveis, talvez por serem trabalhadoras rurais do interior do Brasil, por nunca terem aprendido a ler e escrever. Ali esquecidas e desvalorizadas pela própria comunidade, pelo próprio estado e país.
Por que não cantavam mais durante o trabalho foi minha primeira pergunta.
Soube ali, naquele salão, que as vozes dessas mulheres foram caladas quando grandes empresas de fumo chegaram na região, transformando os trabalhadores em empregados, sem os devidos direitos, proibindo as trabalhadoras de cantar, alegando diminuição da produção. Além disso, para que o fumo entrasse de vez no mercado internacional e a produção aumentasse rapidamente, substituíram o adubo orgânico por adubos químicos altamente nocivos à saúde dos trabalhadores.
Peguei a estrada de volta com todas aquelas vozes na minha cabeça, com as histórias que vinham junto com elas e que foram formando o primeiro capítulo dessa minha trajetória. Já tinha uma resposta para entender o porquê do “quase” desaparecimento dessa cultura. E uma vontade enorme de tentar fazer o possível para descobrir e divulgar o pouco que restava dela pelo Brasil.
Sai dali decidida a contar para o mundo que essas mulheres existiam e assim aconteceu mais para frente quando vieram os shows, gravações, oficinas, em um convívio que só aumenta até hoje.
Também levei dali a vontade de procurar imediatamente outras comunidades pelo Brasil. Onde estariam esses trabalhadores? Cantavam ainda?
Fui bastante desencorajada por historiadores e pesquisadores que acreditavam não ser mais possível encontrar esses cantos de trabalho vivos ou sequer nas memórias. Mas insisti, persisti, e encontrei muito mais do que poderia imaginar.
Os encontros traziam, em contraponto às mais belas cantigas, histórias e contextos muito difíceis, de trabalhos que foram interrompidos com a chegada de fatores ligados à industrialização e à mudança de vida estabelecidas pelos novos modelos capitalistas. Como disse R. Murray Schafer em A Afinação do Mundo: “O trabalho industrial matou o canto”. Muitos desses trabalhadores deixaram as suas terras em busca da cidade grande, abandonando essa cultura e os que ficaram, muitas vezes deixaram de produzir suas próprias músicas e passaram a absorver o que chegava pelo rádio e TV, se distanciando cada vez mais das suas próprias raízes, como era o caso das plantadeiras de arroz que fui conhecer em Propriá, Sergipe.
Essas mulheres tinham suas próprias roças de arroz, cantavam no período da colheita, celebravam em festas para agradecer o cultivo do alimento que sustentava todas as famílias da região, mas com as barragens do Rio São Francisco, perderam suas terras, foram desalojadas e levadas para lugares distantes do rio. Não tinham mais motivo para cantar, para celebrar a vida. Foi difícil acessar a memória daqueles bons tempos, das melodias, dos versos, da vida, como se esquecer fosse necessário. Mas aos poucos foram lembrando e vieram muitas histórias e cantigas, relatadas com saudade infinita.
Mas nas minhas andanças pelo Brasil acabei chegando também em lugares onde os cantos estão presentes durante a lida. Vivendo nos dias atuais em sistema de ajuda mútua, onde a solidariedade reduz as dificuldades individuais. Um desses lugares é a cidade de Serra Preta, sertão da Bahia, onde trabalhadores puderam manter suas pequenas terras, produzindo o alimento necessário para sobreviver, sem utilizar o agrotóxico, seguindo os modos tradicionais de cultivo.
É um lugar que passa longos períodos sem que o céu fique bonito pra chover, como eles dizem, onde a seca castiga fortemente a população mas que por consciência, ou teimosia, não se deixam dominar pelo desmantelo do sistema, que não beneficia em nada o trabalhador rural.
Então resistem bravamente e não abrem mão de ritualizar a vida, de brincar, de festejar, de viver o que aprenderam com seus antepassados e não abandonam a terra onde se reconhecem como pertencentes a uma cultura.
Saí de lá sabendo porque esses trabalhadores ainda cantam.
Desde que comecei essa busca, venho encontrando memórias vivas nas vozes de trabalhadores que viveram a tradição do canto coletivo nas casas de farinha, em mutirões de roça variados, nas cantigas de engenho, nos cantos das quebradeiras de coco babaçu, cantos do cacau, de pilar o milho, as batas do milho, do feijão, cantigas de pilar café, cantos de construção da casa de pau a pique, cantigas dos canoeiros, das lavadeiras, entre outras. Encontrei a presença desses cantos em mais de 20 comunidades espalhadas pelo Brasil e acredito que tenho um longo caminho pela frente. Com certa urgência em continuar esses registros, interrompidos pela pandemia, pois os cantos que estão na memória desses trabalhadores estão também indo embora com eles e dificilmente a nova geração nas comunidades irá manter essa tradição.
Nesses 20 anos de investigação, foram quase 300 cantigas registradas, que estão sendo agora transformadas em partitura e levadas pra muitos educadores e artistas, com o desejo que essa beleza esteja presente nas futuras gerações. Ainda que fora do contexto de trabalho, que aproximem as pessoas que as cantem daqueles que as fizeram existir. Que sejam eternizadas e eternizados!
Renata Mattar
cantora e pesquisadora
São Paulo
nov.2021