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AOS QUE NASCERAM NA PANDEMIA

 

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Desde março, no Brasil, quem tem privilégio suficiente está isolado em casa enquanto espera os pesquisadores sacarem qualé a desse vírus. 

 

Mas a vida não é assim entre paredes, não. Ela é feita de movimento e distâncias. E quando você puder andar, e trilhar e viajar te aconselho a reparar por onde passa. 

Eu tenho andado por aí.

 

Vi borboletas de muitas cores. Também vi moscas de todos os tamanhos.

Vi golfinhos saltando por perto.

Vi uma criança dormindo no chão. Vi um homem dormindo no chão. E vi uma família inteira dormindo no chão.

Vi uma revoada de araras vermelhas. E chorei.

Vi um carro debaixo de uma árvore, que caiu com a chuva. Vi uma casa embaixo de uma árvore, que caiu com a chuva.

Vi chover granizo. Vi chover no mar. Vi chover até debaixo pra cima, bem na minha cara.

Vi duas lagartixas caçando mariposas na janela da minha sala. Uma delas comeu duas mariposas.

Vi uma galera que viaja andando só com uma mochila. Fui com eles.

Vi um vulcão.

Vi uma bandinha de samba tocando na rua onde trabalho, numa terça-feira. Só porque sim.

Vi um cara jogando lixo pela janela do carro. Vi outro jogando lixo no Rio Negro. Vi um cara tacando lixo na praia. E outro, no mar, de dentro de um iate. Vi tanto lixo, mas tanto lixo, que ainda não sei o que vai ser.

Vi um restaurante especializado em cafés regionais, outro especializado em brigadeiros, outro em muffins, outro especializado em camarão, outro especializado em empanadas. Vi um que servia almoço a 1 real.

Vi uma família de macacos bugio, passando pelas copas.

Vi flores de todas as cores. E cheirei cada uma.

Vi um cara tocando violão no metrô. E um cara tocando sax, em outro metrô. 

 

Já fui em pé no ônibus. Já fui esmagada na linha vermelha. Já fui sentada num trem. Já fui dormindo num avião.

 

Vi vários torcedores gritando alegres. Depois se socando, não tão alegres.

Vi uma escultura muito, muito linda. E chorei.

Vi uma peça de teatro muito linda. E chorei.

Vi outra peça muito engraçada. E chorei de rir.

 

Li livros. 

 

Vi uma mulher que tem um macaco-prego de estimação. Mas não sei se ele é feliz.

Vi uma onda gigante, e me joguei nela.

Vi um castelo. Vi uma favela. Vi uma casa no meio da estrada.

Vi vacas com vários padrões de manchas diferentes. 

Vi uma égua amamentando um potrinho.

Vi uma moça chorando, sentada em um banco. 

Vi uma criança chorando no supermercado.

Vi um velhinho dormindo sozinho, na mesa de um restaurante.

 

Puxei papo com um taxista. Puxei papo com uma senhora que vende salgadinho na rodoviária. Puxei papo com um agricultor. Puxei papo com uma guarda. Puxei papo com o senhor que fazia tapioca. Puxei papo com um ator famoso. 

 

Vi um ovo de tubarão. Mas nunca vi um tubarão.

Vi uma onça. Vi duas onças. Vi uma onça com dois filhotes.

Vi um cachorro atropelado na estrada. Vi um coelho atropelado na estrada.

Vi estrada de terra. De asfalto. De pedrinha. De lama.

Vi um lixeiro apostando corrida com outro, pra ver quem pegava o saco primeiro.

Vi um saco de lixo explodir no meu para-brisa.

Vi incontáveis batidas de carro.

Vi um cara usando tubo de oxigênio.

Vi um enterro.

 

Visitei o túmulo do meu avô. E conversei com ele.

Agradeci por, durante toda a vida, ele também ter me contado quase tudo o que ele viu.

 

Roberta Nader

Roteirista 

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São Paulo

 

imagem enviada pela autora

 

setembro 2020