O NOVO NORMAL É O VELHO ANORMAL
Sejamos sinceros, essa pandemia não ensinou à humanidade meio que coisa nenhuma.
Até porque, se pandemias ensinassem alguma coisa, os países europeus não teriam feito os genocídios colonizadores que fizeram no século XVI depois de perder um terço da sua população para epidemia de peste negra. Talvez o medo da morte tenha sido, inclusive, o motor que os fez pegar suas caravelas e invadir meio mundo.
A sensação que tenho é que essa pandemia gerou algo parecido. Geralmente o medo deixa as pessoas mais egoístas e gananciosas, mesmo.
Não à toa nas primeiras semanas de isolamento cansamos de ver notícias internacionais de gente estocando álcool gel e papel higiênico até faltar para todo o resto.
Não à toa, os bilionários do mundo aproveitaram para concentrar ainda mais riqueza e (se é que isso seria possível) estocaram grana e recursos naturais até ficarem ainda mais bilionários.
Mas pro mundo da publicidade o que a pandemia trouxe foi oportunidades, e volta e meia ouvimos a expressão "novo normal".
Mas eu sinto que o novo normal é o anormal normalizado.
Uma das maiores responsáveis por grandes epidemias de vírus são as cidades. As cidades construídas nos moldes europeus que se espalharam (viralizaram) pelo mundo como um padrão imposto de urbanização.
Porque para ser construída, uma cidade necessariamente destrói o ambiente natural que estava lá antes. E ambientes naturais são saudáveis, cidades não. A cidade passa por cima do ecossistema, suja o solo, a água e coloca cimento onde antes se plantava comida. Só aí metade da população já ficou doente.
Para uma cidade existir ela também extermina quase todos os animais daquele ambiente natural ( as comunidades autóctones convivem pacificamente com os animais do território).
Na verdade, a cidade extermina 99% dos animais, deixando pra trás apenas algumas espécies que conseguem heroicamente se adaptar ao seu ambiente insalubre. Só que é justamente a quantidade de espécies diferentes que controla epidemias de vírus. Quanto mais equilibrado um ecossistema está, menos vírus se espalham. Morcegos, ratos e macacos são hospedeiros frequentes de vírus. Sem predadores naturais, eles encontram nas cidades, pastos, monoculturas lugar perfeito para se multiplicarem de forma descontrolada e ficarem muito próximos das pessoas. A destruição ambiental é a principal forma dos humanos terem contato com vírus desconhecidos.
Também porque, apenas as cidades são capazes de concentrar tanta gente em um espaço tão apertado. E alta densidade populacional tende a ser bastante insalubre e um primor para espalhar vírus de forma epidêmica. Desde 2007, há mais gente morando em centros urbanos do que fora deles. Mais de quatro bilhões de pessoas vivem em apenas 1% da massa terrestre do planeta.
(literalmente metade do mundo se aperta em 1% de todo o espaço)
A maior fazenda de gado do Brasil é maior do que Hong Kong. A média de um apartamento em Hong Kong é entre 30m2 e 40m2
O que se chama ""desenvolvimento"" para mim é des-envolvimento = deixar de envolver-se. Envolver-se com o quê? Com a terra, com o entorno, com os outros seres vivos, com o coletivo, em suma, com o planeta esse que habitamos.
E junto com as cidades, sua sujeira, densidade e insalubridade, chegam junto novas exigências aos moradores daquele território, que então passam a ser normais. Novos normais.
Quando todos os rios são tapados com asfalto e todo solo cimentado, o descarte orgânico natural do nosso corpo (cocô) que era naturalmente absorvido pela terra, passa a ser um problema enorme causando doenças sérias. A rede de esgotos, uma solução para um problema recém criado, passa a ser então… "o novo normal". É impensável uma cidade sem uma trama gigante e complexa de tubos, canos e fossas, mas esquecemos que a rede de esgotos só existe porque a bacia hídrica original foi destruída. Só que o ponto perverso é que a própria cidade nega para parte de seus habitantes saneamento básico, relegando para quem não tem capital, as doenças. O ambiente natural não nega rio, nem solo saudável. A cidade tira de todos e devolve apenas para alguns.
Se pensarmos bem, até o sapato já foi o "novo normal" em muitos lugares do mundo. Botas de couro e pele sempre foram usadas para proteger do frio, mas incontáveis sociedades humanas viviam (e vivem) descalças em seus territórios antes da cidade-padrão-europeia invadir seu modo de vida e cultura.
Na Mata Atlântica por exemplo, hoje o Sudeste, parte do Sul e Nordeste brasileiros, o sapato foi o "novo normal" em algum momento. Hoje, ver alguém andando descalço na rua é incabível, até porque corre-se um risco real de pegar doenças. Mas para um Guarani, Tupiniquim ou Tupinambá que morava aqui antes, andar descalço no solo saudável era uma escolha absolutamente natural.
A máscara não é novidade em algumas cidades da China ou do Japão.
Não só porque há duas décadas eles vêm enfrentando epidemias virais com mais frequência que nós, mas também porque algumas cidades já atingiram níveis extravagantes de poluição. Só na China, a poluição mata cerca de 1,6 milhão de pessoas por ano (320 vezes mais que a epidemia do novo coronavírus matou por lá).
Então sim, talvez a máscara seja nosso novo normal.
Nossos filhos acharão bizarro alguém andando na rua sem máscara tanto quanto nós achamos hoje alguém andando sem sapato. Talvez o novo normal seja mesmo ficarmos a 2 metros de desconhecidos em qualquer lugar público, e nossos filhos achem um horror quando contarmos dos shows lotados onde mal conseguíamos baixar o braço porque tinha um estranho suando e berrando perdigotos no nosso cangote.
Mas pra mim, a possibilidade de viver em um mundo em que o "outro" é um inimigo virótico em potencial, onde não se possa esbarrar em estranhos numa pista de dança, não é um bom "novo normal". Não pretendo me acostumar com o fato da máscara ser normalizada para sempre como o calçado foi.
E a perversidade é que esse, e tantos outros vírus, que foram gestados e criados nas grandes cidades insalubres, está matando em números vertiginosos justamente aqueles que vivem à margem, por opção, como as dezenas de nações indígenas sul americanas, ou por falta de opção, como as periferias do mundo, que são o sintoma mais avassalador da urbanização e da expulsão do homem do ambiente natural.
Não é que não devamos usar máscara, hoje, para protegermos uns aos outros. Não é que não devamos manter o isolamento social. É que o discurso hegemônico que afirma que esse será o "novo normal" é o mesmo que quer esconder de nós que é mais lucrativo para o grande capital que a gente se acostume a ficar em casa e não sair da internet, se acostume a consumir online das ultra empresas que estão ficando mais e mais bilionárias. O que eles nos escondem é que esse não precisa ser o novo normal, que para evitar essas e novas contaminações de vírus basta parar o desmatamento do mundo. E mais do que isso: reflorestar!
Um estudo conduzido por uma bióloga brasileira mostrou que o reflorestamento é uma das melhores prevenções para epidemias. A equipe de Paula Prist simulou a influência da restauração florestal sobre populações de roedores que são reservatórios de hantavírus na Mata Atlântica. Eles verificaram que a recuperação de 6 milhões de hectares diminuiria em até 90% a abundância de roedores, reduzindo o risco de até 2,8 milhões de pessoas serem infectadas pelo vírus.
As florestas protegem os humanos de novos vírus, como o hanta e o corona.
Mas é mais lucrativo nos empurrar o "novo normal" do que reavivar o antigo normal: a floresta em pé.
O que nos diz, então, esse "novo normal"?
Que o padrão de cidade como foi criado deu ruim: as megalópoles do planeta são a coisa menos saudável que podemos imaginar para morarmos.
Que a globalização é uma mentira. "Globalização" não passa de uma grande imposição mundial de um único padrão hegemônico. Um padrão de cidade, um padrão de higiene, um único idioma e um único sistema econômico, onde alguns vão se dar muito bem e ficar com todo o álcool gel (e todos os bilhões de dólares) e pro resto sobrará esgoto a céu aberto, máscaras para sair de casa… E vírus, que pela primeira vez na história circulou de forma tão ampla, tão global e tão rápida.
Um "novo normal" que nada mais é do que um absurdo anormal, normalizado goela abaixo.
Como nos lembrou Marina Colasanti:
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
(...)
A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.
(...)
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.