DEBATE
Semelhanças não são meras coincidências.
A discussão a respeito da abolição da escravatura no Brasil corria solta. Uma tese publicada no jornal por um respeitado economista, daqueles de encher de orgulho os Paulo Guedes da vida, defendia que a abolição seria um custo desnecessário. Baseava-se em dados do Censo, onde era constatado que, no Brasil, os pretos morriam muito mais cedo que os brancos. O economista dizia que era só deixar a história seguir seu curso natural e, em poucos anos, o país já estaria livre de qualquer herança africana. Sem grandes prejuízos. Isso não é piada. É fato histórico. A tese era respeitada e teve muitos apoiadores.
Fiquei imaginando como seria um debate na nossa TV, se televisão houvesse naquela época. Um desses programas super democráticos e abertos à diversidade de opinião, que convidaria o criador da tese e, para contrapô-lo, um “liberal moderado”, defensor da abolição, desde que observadas as consequências da mudança, a fim de evitar um colapso na economia. Chamemos o primeiro de ultra-escravagista e o segundo de abolicionista liberal. Escravizados no programa, apenas para servir o café e limpar o estúdio, afinal, a discussão tem que ser séria, embasada.
O abolicionista liberal defende seu ponto.
- A abolição virá, queiramos ou não. Melhor nos anteciparmos às implicações econômicas advindas dessa transformação, calcular as devidas indenizações, e...
- Quem calcula?
- O quê?
- Tenho uma parda de seus 20 anos, ótima cozinheira, que ainda lava, costura e engoma perfeitamente. Por outro lado, ano passado adquiri um moleque de bom corpo, fala macia, mas que anda muito devagar e tem pouquíssima aptidão para o trabalho. Como calcular a diferença no valor indenizatório de ambos?
- O senhor está particularizando demais. Há que se calcular os prejuízos para a sociedade como um todo, se nos tornarmos um pária no mundo. A Inglaterra já está a nos deixar em maus lençóis com suas sanções.
- Os ingleses não me farão renunciar ao que é meu por direito. Se meus negros seguirem trabalhando para mim, ao menos retribuirão parte do investimento que fiz neles.
- Agora sou eu quem pergunto. Quem calcula? Quem será capaz de precificar, na relação custo-benefício, quanto tempo mais seria justo para que seu investimento tivesse bom resultado? Por outro lado, por mais que o senhor produza, se os ingleses não compram...
- De novo, os ingleses?
- Estou falando de mercado!
- E eu, de respeito à propriedade privada!
O apresentador se sente impelido a intervir, para acalmar os ânimos.
- Senhores, por favor. Isto está mais parecendo um zungu, cada qual a seu tempo.
- Só estou a defender uma emancipação lenta, gradual e segura. Que seja concedido ao grande proprietário o direito de libertar seus escravos quando e como queiram.
- É essa insegurança jurídica que vai acabar forçando a monarquia a acelerar o processo de abolição.
- Mas não era o que o senhor estava a defender? A abolição?
- Depois de chegarmos a bom termo na reparação aos nossos empreendedores. Defendo substituir a mão-de-obra escrava e proceder a transição para o trabalho livre, não obrigatoriamente assalariado, ressalte-se, sem o mínimo de traumatismos à ordem estabelecida.
- Está mais do que na hora de concretizar uma visão de Brasil como modelo de civilização branca dos trópicos. Vamos empreender o branqueamento da população, afastando de vez o predomínio das raças inferiores.
- Além do mais, em 100 anos, ninguém haverá de lembrar sequer que um dia houve trabalho escravo neste país.
O apresentador, satisfeito, vai encerrando o programa.
- Como é bom participar de um debate de tão alto nível, com ouvidos e mentes abertas, em busca de um objetivo único: o progresso da nação! Afinal, divergências à parte, somos todos um só Brasil, correto?
- Sim, claro! Viva a Democracia!
- Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!
- E viva a Liberdade!
Pois é, semelhanças não são meras coincidências.
Rodrigo Salomão
roteirista
ilustração printerest
Rio de Janeiro
abril 2022