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REUNIÃO DE FAMÍLIA

 

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Depois de meses de isolamento, enfim a família se reencontrava. Entre uma fatia de picanha e um pedaço de linguiça toscana no salão de festas tijucano do prédio onde morava Osvaldo, reservado especialmente para o convescote, o conforto de falar mal de Bolsonaro. Um assunto com o qual nem Juliana, irmã mais nova de Osvaldo, conseguiria polemizar.

 

Não houve beijos nem abraços, ainda que o uso de máscaras, combinado de antemão, fosse dispensado. Kátia, esposa de Osvaldo, até criou o “Cantinho do Corona”, com pequenas caixas decoradas e devidamente etiquetadas para que cada parente guardasse a sua máscara ao chegar. Que mimo, exclamou Marta, irmã mais velha, não sem relativa inveja por não ter sido autora da ideia. Juliana e seu filho, Marquinhos, únicos de Face Shield, tiveram que se contentar em guardá-las num canto do cantinho, uma vez que as caixas eram pequenas demais para tamanhos apetrechos. Exagerada como sempre, ironizou a matriarca, vó Salete.

Outro consenso, combinado no zap da família, na semana anterior: para que o evento ocorresse, todos deveriam estar devidamente quarentenados. Curioso foi como cada um definiu seu conceito de quarentena.

Osvaldo e Kátia, por exemplo, só saem de casa pra dar uma caminhada e aproveitar pra comprar pão e jornal. E, vá lá, passar no caixa eletrônico pra pegar o dinheiro com que compram seu pão e seu jornal. Marta não abre mão de ir ao supermercado escolher os produtos que vai levar pra casa, mas Dirceu, o marido, ressalta que sempre tomam os cuidados necessários. Ou seja, máscara, muito álcool gel e uma quase perfeita distância dos outros clientes. “Quase” porque, afinal de contas, nem sempre é possível seguir tantos protocolos. Juca, o atleta da família, corre todo dia sem máscara, mas jura que é cedinho, não tem ninguém na rua. E, quando aparece algum paranoico pra encher a paciência, rapidamente tira a máscara do bolso traseiro do short e a veste, até que o chato suma de vista.

Vó Salete se cala, contrariada. Todos reparam. Que foi, dona Salete? Não está contente de ver a família? Ela reclama do assunto aborrecido. Não têm mais nada pra falar, depois desse tempo todo sem se verem? Marquinhos, por exemplo, agora que tirou aquele capacete que mais parecia de um astronauta, deu pra ver que começou a ter bigode. Bigode! Como o tempo passa rápido. Já retornou às aulas de tênis no clube? Marquinhos revela que não quer mais jogar tênis, acha o esporte elitista, nada a ver.

Sorrisos condescendentes e incomodados se voltam à Juliana. O inconveniente esquerdista só podia ser filho de quem é, Ju, eterna rebelde, duas vezes desquitada, anos sem falar com o pai coronel, até meses antes de seu passamento, que deus o tenha. Sempre foi ótimo marido e provedor, destaca Salete, toda vez que o nome do coronel é citado.

 

A avó não gosta do comentário de Marquinhos, mas adora o garoto. Ela, que se orgulha de ter sido uma dona-de-casa exemplar, mãe dedicada e ainda ser avó amorosa, tem um carinho especial pelo neto, seu preferido, apesar das ideias amalucadas que Juliana pôs na cabeça do filho. Continua assim que vai acabar jogando palitinho em botequim, tomando média com margarina e invadindo a casa alheia com seus companheiros de luta, ela alfineta. E todos adoram.

Com exceção de Juliana, a família preza muito o senso de humor de vó Salete, cujas piadas racistas talvez não caiam muito bem hoje em dia, mas, poxa vida, há que se dar um desconto e aceitar serem de outra época, mais ingênua, menos cheia de questionamentos. É cancelamento que diz, hoje em dia?, pergunta Osvaldo, para quem a agressividade de homossexuais e antirracistas só pode gerar retrocesso, em vez do lento e gradual avanço que essas gentes têm conquistado ao longo dos anos. Quiçá, décadas. Mas que avançaram, avançaram. Talvez até demais, isso ele pensa, mas não diz.

Juca resolve brincar com vó Salete, dizendo ser melhor não mexer com Marquinhos. Quando o garoto fica irritado, só cloroquina na veia pra segurar, atira a farpa, mirando Juliana, a quem sempre considerou arrogante por insistir naqueles papos nauseabundos sobre livros, cinema europeu, desigualdade social e outras baboseiras.

 

Juliana se cala, não por covardia, mas pela certeza de que sua presença nada mais é que um exercício de estoicidade atroz, uma tortura a que se submete para não alijar o filho do contato com a família, mesmo que ela não entenda bem a razão desse desejo.

Culpa cristã, talvez, pensa ela, que só entra em igreja quando é passeio turístico. Talvez por conta das reminiscências da infância ao lado dos irmãos ou pelo amor ressentido que teima em sentir pela mãe, cercada de cuidados desde que, 5 anos atrás, o coronel se foi.

 

Só que Marquinhos é arrogante, adora uma polêmica. E, apesar da avó, única por quem tem carinho de verdade ali, mesmo tendo 5 primos de idades próximas, não se contém. Com um sorriso sarcástico, responde que se a cloroquina diminuísse a irritação, ele bem aceitava tomar. Assim, não ficava tanto tempo imaginando como seria bom aplicar supositórios bem grandes da mesma, combinados com a agora famosa ozonioterapia retal, naqueles que elegeram a besta que hoje é motivo de piada de salão, enquanto centenas de milhares de corpos vão se acumulando no país.

 

O silêncio ensurdecedor que toma conta do salão só é quebrado quando vó Salete diz que nem lembra a última vez que votou. Ela simplesmente odeia política. E quem não odeia, pergunta Marta, arrancando sorrisos amarelos de todos.

Juliana tem um desejo enorme de se levantar e encher o filho de beijos. Mas se contenta em elogiar a picanha argentina escolhida por Kátia. E dá uma bela de uma bocada naquela carne sangrenta.

Rodrigo Salomão

Roteirista

Rio de Janeiro

 

 

agosto 2020