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TUDO QUE A GENTE PENSA EXISTE

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Técnica:

Corpos sobre Terra

Bettine Silveira

 

Hoje, passado alguns dias de confinamento, vivendo e experimentando dias de angústia e medo, me peguei pensando na matéria- corpo. Perceber esse corpo com suas múltiplas faces, na sua inconstância, na sua potência e na sua fraqueza. Imersa em diferentes polos de reflexão: vida/morte, saúde/doença, normal/patológico, liberdade/aprisionamento, dinamismo/drama, me dei conta que nem sempre esse corpo ocupa nossa mente, e eu não estou falando da nossa aparência, o corpo vestido, da forma de como nos apresentamos no mundo, que é como normalmente penso. Na “normalidade” da minha vida, penso a moda e os modos de existir, estudo os saberes ancestrais e tradicionais, são coisas que me encantam e preenchem minha atenção e interesse.

 

Assim, evocando minha pesquisa na cultura africana, lembrei do candomblé e seu sistema religioso terapêutico, onde o corpo extrapola a simples condição física ou estética, ele é o elemento que conecta o homem ao sagrado, é visto como a morada dos Orixás e canal de comunicação entre os homens e as divindades. Nessa cosmovisão, o corpo é também o local para transmissão de energia vital. São formas particulares de saberes e práticas de saúde que extrapolam a ideia do “corpo máquina”. O corpo serve como “veículo” onde manifesta emoções de toda natureza.

 

A frase que usei de título para esse texto, “Tudo que a gente pensa existe”, é de Estamira, catadora de lixo e personagem de um documentário extraordinário do mesmo nome, que nos traz reflexões pertinentes para todos os momentos, mas nesse em especial. Naquele contexto, vemos a subsistência como forma de existência. Nesse outro sentido poderíamos adubar o sub para florecer e enriquecer a existência. Imergir na lama (não no lixo) para incorporar outras formas de viver. Colapsamos, a terra colapsou, nossos corpos colapsaram, essa forma de mundo que conhecemos acabou. “Nada existe fora da devoração, o ser é a devoração pura e eterna”, já disse lá atrás Oswald de Andrade. Somos isso.

 

Todo esse fluxo de pensamento me instigou a pensar que esse momento é o momento de propormos novas relações com as coisas, novos usos, novos sentidos, novas estéticas. Pensar em outros mundo possíveis, novos modos de vida para começar de novo. 

 

Precisamos do vírus transformador do artista. Aquele que germina novas formas de existir.

 

O desafio está posto.

 

 

Bettine Silveira

Figurinista e 

Pesquisadora dos saberes ancestrais e tradicionais

 

 

Rio de Janeiro

abril 2020